Sentimentos soterrados e demência tardia

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Estava fugindo. O chão estava molhado e seus ofegos e pés sobre as poças destruiam o silêncio daquele lugar desconhecido e escuro. Pensava em como havia parado ali e de repente viu uma luz ao longe. Correu ainda mais rápido e em breves segundos chegou até ela. Era um belo jardim, repleto de flores coloridas e uma brisa tão calma que por breves segundos fechou os olhos e sentiu os fios negros mexerem. Escutou um barulho sorrateiro e quando viu, os cinco garotos estavam lá, não haviam mudado em nada. Queria falar com eles e por tal motivo se aproximou, mas então teve o tornozelo agarrado e seu corpo foi ao chão.

O jardim passou a escurecer conforme ainda recobrava os sentidos e a visão deixava de estar embaçada. Imediatamente virou para ver os rapazes, que já haviam desaparecido. Ao retomar a visão para seu corpo viu que a mão sobre seu tornozelo se transformava em uma cobra, assustado se distanciou e levantou o corpo o mais rápido que pôde. Então sentiu mãos lhe agarrando e viu surgindo da escuridão um homem ao qual não conseguia ver o rosto.

Debatia braços e pernas, ao passo em que o rosto se enchia de lágrimas e babujava sobre si, tamanha a vontade de se soltar daquele aperto. As mãos eram grossas, com os ossos das juntas salientes e pêlos enfeitavam a parte superior da mão e partes dos dedos. Quando iria conseguir ver o rosto um barulho estridente vindo da outra direção do lugar lhe chamou atenção.

— O que houve? - Era visível a preocupação na voz da mulher, que logo Jungkook reconheceu sendo sua mãe e percebeu que havia tido um pesadelo. — Tudo bem?

— Não foi nada, só...- Como nomear aquilo? Um pesadelo sem sentido com todos os rapazes pelo qual já havia se envolvido. - Um sonho ruim. Vou tomar um ar, volte a dormir.

A noite estava com um clima agradável, mas Jungkook não se sentia bem. Estava letárgico e impressionado pelo sonho. Talvez começar a escrever as cartas houvesse despertado sentimentos e temores que há muito tempo soterrava com a vida cotidiana. Andou até a parte de entrada da casa e na cadeira de balanço sentou.

— O que faz aqui? - A voz era conhecida, mas o rosto a sua frente parecia bem diferente do que se lembrava do irmão; deveria haver mais bochechas, barriga e ombros, olhos com óculos e menos olheiras. — Achei que estaria em Daegu ainda. - Não sabia que Hoseok estaria em casa, muito menos que o encontraria chegando aquela hora da madrugada; o irmão sempre fora mais certinho na adolescência, o mais responsável, o mais animado, o mais talentoso...Sempre fora mais.

— Não encontrei o que procurava. - Foi sincero, talvez pelo cansaço: do sono perdido e pela vida que já previa perder. Para sua surpresa o irmão questionou o que buscava em Daegu. Não gostava do irmão. Na verdade, Hoseok o fez desgostar de si e como nunca havia tentado convencê-lo a gostar novamente, Jungkook apenas era adepto a distância. — Procurava um amigo. - Soou mais como se tivesse saído em busca de companhia, mas o Jeon sabia o que quis dizer e aquilo bastou.

— Também andei procurando coisas. A maioria já não vou encontrar mais. Sabe, eu andei pensando e acho que vou me mudar para Seoul. Antes não iria porque nossa mãe se sentiria sozinha, mas agora ela tem... - Falava tudo rápido, como se fosse perder a chance caso parasse para respirar e então se calou tão abruptamente que o irmão mais novo virou para olhar o que havia lhe silenciado. O Jung engoliu as palavras por pena, pois sabia que era quase como comemorar o que havia acontecido.

— Ela tem um doente para cuidar pelo resto da vida. - Jungkook concluiu. Achou que escutar aquilo pudesse ser mais doído do que realmente foi. Seus próprios pensamentos eram tão mais fortes e mórbidos, doentios e desagradáveis, que a delicadeza utilizada para contornar o assunto lhe incomodou mais do que feriu. Estava irritado por receber pena de alguém que já havia desejado sua morte; estava morrendo, mas o irmão parecia não querer admitir, como se falar em voz alta concretizasse o que já se sabia ser o futuro doente de seu irmão caçula.

Voltou para seu quarto. As cobertas bagunçadas, a escrivaninha tomada de pó e as cortinas abertas, permitindo ver as estrelas. Se sentou sobre a cama e passou a contemplar o céu que nunca conseguia ver quando estava morando em Seul. Lembrou da esposa - que muito provavelmente já havia encaminhado os documentos para se tornar ex. Como havia se permitido chegar naquele ponto? Não era difícil de se achar coreanos infelizes com seus empregos e hipócritas em seus condicionamentos, mas Jungkook com toda certeza conseguia ser como a média e ainda mais: tinha um casamento de fachada, pelo menos de sua parte.

Havia conhecido Anh HyeJin em uma reunião de calouros da faculdade de Administração, mas não chegaram a se falar. Três anos depois um rumor sobre si começou a circular em algumas cadeiras que fazia e então sua preocupação por encontrar uma namorada aumentou. Começaram a sair, mas não deu certo: brigas banais seguidas de toques físicos forçados. Os rumores diminuíram e pode encerrar a faculdade com tranquilidade. Quando no seu primeiro emprego descobriu que sua colega de mesa seria HyeJin se surpreendeu, mas haviam terminado de maneira razoavelmente bem e então começaram a conviver, se tolerar e então a serem próximos.

Descobriram uma amizade que jamais haviam tentado explorar, ambos se davam bem e tinham personalidades divertidas. Quando numa noite, ao irem beber após o término do serviço, a amiga disse que estava apaixonada por si. Sem saber o que dizer e torcendo muito para que toda aquela alegria que sentia ao estarem juntos fosse o início de uma paixão, começaram a namorar. Um ano depois haviam noivado e após mais dois anos o casamento ocorreu em um cartório em Seoul. Sua mãe estava feliz, HyeJin estava feliz, a família da esposa estava feliz e então achou que poderia se contagiar por toda felicidade, mas fingir ser feliz não é fácil, ainda mais por tanto tempo. Com cinco anos de casados o divórcio estava por vir.

Ainda olhando pela janela retomou sentimentos antigos, que brevemente vieram enquanto conversava com o irmão. "Eu espero que você morra ao invés de fazer isso com a nossa família!", recordava completamente as palavras escutadas quando apenas tinha dezessete anos; acreditava que seria uma das últimas coisas que iria esquecer. Deitou-se sobre as cobertas e relembrou todo o acontecido. Seu sono foi pesado e se chegassem perto da porta de seu quarto seria possível escutar as lamúrias ditadas em meio ao dormir. O rosto enfeitado por filetes de lágrimas e alguns papéis dispostos ao lado do travesseiro.

— Aonde vai tão cedo? - A Sra. Jeon colocava mais alguns gravetos no fogão a lenha e mexia uma leiteira. Estava mais frio do que no dia anterior e a mãe do rapaz tinha a ponta do nariz comprido vermelha, assim como o caçula que já passava pela sala.

— Vou até Seoul e ficarei alguns dias por lá. Mando uma mensagem quando chegar. - Tinha muitos planos e ansiedade, um post it de keroppi no bolso e a sensação de que as fases dos dias que viriam a seguir seriam difíceis. O que lhe confortava era que, em sua cabeça, repetia que iria morrer e não tinha nada a perder - nunca temos realmente.

O trem que lhe levaria para Seoul não era tão confortável e nem mesmo havia conseguido um lugar ao lado da janela. Talvez em algumas semanas esqueceria o porque gostava tanto de admirar a paisagem enquanto andava de trem, mas naquele momento ainda tinha consciência de tal coisa, mas não podia aproveitá-la. Quando um banco de dois lugares vagou, rapidamente foi para o assento. A vista não era tão bela, mas com certeza aproveitaria; achava incrível como descobrir a doença havia lhe feito mais indiferente ao mesmo tempo que havia lhe despertado para algumas coisas também. Jimin diria que era uma mudança de perspectiva e Jungkook apenas pensou que sentia sua falta. Por um breve momento se pegou pensando que nunca esqueceria o rapaz. "Seu mentiroso...", pensou, mas logo teve o devaneio interrompido quando recebeu uma cotovelada de quem se arrumava para sentar ao seu lado.

— Desculp...Jungkook? A quanto tempo... É você mesmo? - Quis sair do trem e fingir que nada aconteceu; adiantar os estágios e se comportar como se a demência já se proliferasse no corpo. Apenas sorriu.

I WILL NOT FORGET - [jikook]Onde histórias criam vida. Descubra agora