O CASAMENTO DA FOLHINHA DE MESA COM O COMPUTADOR

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Passados 29 anos que aposentei minha máquina Olivetti de escrever tenho vagas lembranças se o seu teclado era de um azul escuro luminoso onde se assentavam as letras brancas ou de um chumbo encardido. As recordações são perturbadoras como as casas que a gente passa um tempo na vida. As cortinas se fecham para nunca mais abrir e as flores dos meus jardins ficam delas apenas fragmentos na mente. Lembrei-me disso porque estou há 15 anos, precisos, atuando no meu site Bahia Já usando computadores e sinto que essa nova tecnologia domina meu ambiente de trabalho.

   Era de se supor, imagino que vocês pensem assim, que uso essas mesmas novas tecnologias para me atualizar em dados jornalísticos sobre as notícias que correm pelo mundo, pois tenho o dever de atualizar diariamente o meu meio de comunicação. E é o que faço, uma vez que já deixei de ler os impressos há, ao menos 5 anos, mas, por uma dessas relações do novo com o velho mantendo o hábito, ano após ano, de adquirir e acompanhar o passar dos dias por uma folhinha Coração de Jesus - abençoai este lar - um impresso das Paulinas.

   Também era de se imaginar, assim interpreto o pensamento dos meus leitores e leitoras, que eu estivesse acompanhando esse passar dos dias por um meio eletrônico, um calendário no iPhone, a verificação do santo do dia no Google, a tabela dos feriadões do ano num Samsung, mas, confesso que uso os dizeres do impresso das Paulinas e, se isso ainda fosse pouco, marco num calendário de mesa com um círculo de caneta, a data do dia que passou. É visual, é permanente à minha vista, quando não o do Salão Chame-Chame o do Banco do Brasil.

  Incrível isso. Neste final de 2021 a gerente prime do BB já me telefonou dizendo que estaria a mandar-me os calendários de mesa sabendo ela que eu os utilizo. Há uma satisfação mútua nisso como as trilhas dos caminhos de viver. Sapato velho se usa até não mais poder. Essa relação entre as velhas tecnologias com as novas, ao que percebemos, são eternas enquanto duram. No dia em que o BB ou a Lady Andréa deixar de enviar-me as folhinhas poderão cessar. Ou quem sabe, não desistirei de manter meu velho hábito e procurarei outro atalho com um novo fornecedor.

   Já estive comerciante em determinado momento de minha vida e um dos brindes que costumava dar aos clientes de minhas lojas eram as benditas folhinhas. Tinha um fornecedor que nos outubros aparecia com um mostruário e eu encomendava as que queria, em especial, aquelas com paisagens europeias com neve nos meses finais do ano ou com imagens de santos. Até hoje não entendo porque nós, dos trópicos, gostamos tanto dessas imagens. Mas, diria, com acerto, que os meus clientes adoravam. E, não só os meus, mas outros tantos. E o fornecedor - já sabendo disso - tinha inúmeras dessas imagens para nos vender.

  Em outros dos meus negócios, na comunicação - minha praia preferida e que meu deu régua e compasso - encomendava numa gráfica de Salvador calendários de bolso com estampas de mulheres nuas, ainda hoje em uso nos variados modelos. Quando comprei - recentemente - a Coração de Jesus de mesa nas Paulinas a freira que me atendeu no caixa deu-me um desses mini calendários de bolso, que se coloca na carteira de cédula, 2021, com uma imagem estilizada de Jesus em oração e a frase: "Tudo o que pedirdes em oração, tendo fé, o recebereis" Mt 21-22.

  Sutil esse artificio. Calendário de mulheres peladas já foram (ou ainda são) os preferidos em borracharias e uma empresa famosa fabricante de pneus distribuía um deles de alta qualidade e figuras enormes que fazia grande sucesso. Estes e outros menores, no entanto, não eram recomendados para casas de família. E numa loja ou numa empresa prestadora de serviços seus donos sabem os modelos de cada folhinha para seus clientes.

  Meu pai tinha uma tipografia no interior da Bahia que produzia folhinhas e calendários nas décadas de 1940/1950. Veja como essas estampas são antigas e até hoje sobrevivem mesmo com as novas tecnologias. No final da década de 1980 participei do marketing da campanha de um espanhol basco chamado Pedro Irujo, a deputado federal pela Bahia. Pedro era da elite dos Irujo de Pamplona e estava na Bahia há anos, empresário de sucesso. Mas, ainda assim, falava mal o português e não sabia cumprimentar o povo a moda dos políticos do sertão com tapas nas costas e carrego de crianças.

   Uma das peças de aproximação de Irujo com o povo do sertão onde peregrinava votos no semiárido foi exatamente uma folhinha de parede para o ano seguinte da eleição com sua foto e dizeres populares. A folhinha fez o maior sucesso tanto que foram impressos milhares de exemplares e a população dos bairros periféricos de Salvador, de cidades do interior de residentes da zona rural disputavam a folhinha a tapas. Irujo foi eleito e é provável que a folhinha tenha ajudado. Nunca se saberá.

   Traços essas linhas dentro do contexto deste livro para mostrar como as velhas tecnologias convivem com as novas, se entrelaçam, ainda que em modelos de usos distintos. Essa é a diferença palmar. Eu, no meu meio de comunicação que é o essencial, o mais relevante para mim, não posso mais usar as velhas tecnologias porque elas agora são peças de museus - as máquinas de datilografia; mas, possa usar (e uso) velhas tecnologias nos acessórios. O calendário é um acessório, a caneta outro, a caderneta de anotação no papel mais um deles. Eles, no entanto, não são essenciais. Poderia sobreviver sem eles? A pensar.

   Na última quinta-feira, à noite, assisti uma palestra do Miguel Nicolelis sobre o cérebro intitulada "Verdadeiro Criador de Tudo" transmitida pelo ICL - Instituto de Conhecimento Liberta - mediado por Eduardo Moreira, e o mediador avisou aos mais de 80.000 participantes da sala-aula "usar a caneta e o papel para fazer anotações de perguntas". Prosaico. Se tudo era on-line, chat a disposição, as pessoas conectadas nos laps por que usar a recomendação da caneta e do papel?

  Exatamente porque ainda não conseguimos - nem o ICL que é um instituto que oferece centenas de cursos todos on-line - nos dissociar dessa relação entre o novo e o velho. 

  Voltando ao meu trabalho essencial, meu ganha pão que é a comunicação, dando mais um exemplo dessa relação velho-novo, me esforcei na época para comprar um dicionário Aurélio Houaiss que era o top de linha em dicionário da língua portuguesa, em 2001. E, hoje, vejo-o relegado a plano zero em minha estante. Um algoritmo, o PageRank do Google - The Anatomy of Large Scale Hipertextual Web Search Engime - me oferece informações gratuitas, em segundos, de dúvidas que possa ter sobre português e outros temas.

  Assim - dentro da minha área (e muitas outras com similares interpretações) aposentei também as enciclopédias e as pesquisas sobre os mais variados assuntos nos impressos. Essas são essenciais no meu trabalho e as novas tecnologias me ajudam bastante, assim como em outras áreas, da medicina ao direito.

  O casamento entre as novas e as novas tecnologias, como vês, seguem nos acessórios - e viva ao meu Coração de Jesus - mas, no essencial, se divorciaram. Muitas cirurgias que eram feitas com cortes no corpo humano, hoje, são realizados por profissionais da medicina usando a robótica sem cortes e com resultados considerados melhores e mais rápidos na recuperação dos pacientes.

A Cadeira e o Algoritmo -  A Convivência Entre as Velhas e Novas TecnologiasOnde histórias criam vida. Descubra agora