Capítulo 8

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Não tenho muitas lembranças daquele dia, lembro-me de estar deitada na neve imunda e fria que incendiava minha pele, lembro de sentir alguém me carregar para dentro. As mãos delicadas de Nestha se agarraram em minhas costas, com certa dificuldade, mas fez; nunca imaginei que Nestha faria algo por mim, pensei que se pudesse, ela me deixaria morrer na frente do chalé, para que acontecesse o que um dia ela disse. Eu morreria e ninguém mais se lembraria do meu nome.

Mas de alguma maneira ela conseguiu me levar para dentro, temendo também ser levada pela besta, mesmo adsim enfrentou seu medo e me levou para dentro. Depois disso, não me lembro de mais nada.

Os próximos pensamentos foram um emaranhado de confusão; mal sabia o que era real. Vi Feyre fria diante dos meus olhos, a pele pálida e escura, logo a promessa, minhas dúvidas, as responsabilidades. Eu vi a vida e vi a morte, sem saber o que era real.

As memórias eram vagas e apagadas; lembro-me de alguém tentando tirar minha roupa, a água fria, os panos úmidos, remédios horrorosos que entravam na minha boca. As convulsões, tremedeiras e tanta tosse que sangue pingava no lençol, então a intensa dor que difamava minha perna, o fogo que queimava meu quadril, todo dia, sentia como se estivesse sendo consumida; devorada.

As vezes ouvi o choro de Elain, as vezes vi a preocupação latente no rosto frio de Nestha.

E agora, eu abro meus olhos. Sem saber quantos dias se passaram, minha língua se move agoniada com o toque seco, minha visão antes aguçada agora estava embaçada, tentando se ajustar enquanto piscava. Apesar disso, sem ver, eu podia sentir a textura suave do lençol que estava abaixo de mim, a maciez do colchão, o cheiro de novo, me apoiei em meus braços, um chiado saindo da minha boca ao estalar os ossos da costela, logo percebi que não usava mais as roupas velhas de antes e sim uma camisola branca. Eu não tinha nada como isso.

Me sentei, olhando tudo em volta, de longe aquilo não era o chalé. O quarto era espaço e repleto de cores claras e escuras, preto e branco, com novos móveis dispostos nos cantos superiores. Tudo tão... Rico.

A porta se abre e logo minha irmã passa por ela, Elain não usava os mesmos vestidos maltrapilhas de antes, agora usava uma bela peça e aparentemente caro, observei os detalhes; o busto feito por um caro tecido azul claro, suas mangas caidas por seus braços finos, mostrando sua pele delicada e lisa dos ombros, a ssia descia até seus pés, o tule tinha flores bordadas minuciosamente.

Ela carregava uma bacia com água, e se assustou quando me viu sentada. Nos minutos seguintes Elain sorriu e gritou por Nestha, tão alto que me questionei se ainda estava sonhando. Percebi que estava muito acordada quando Nestha apareceu, usando um vestido simples em detalhes, mas que não economizava na elegância; era um azul escuro, a saia reta moldava sua cintura estreita, descendo por suas longas pernas, as mangas longas chegavam até os pulsos, e os ombros eram escondidos, restando um decote discreto, seu pescoço foi enfeitado por uma singela joia. Uma rainha, sem trono e sem uma coroa.

- O que está acontecendo? - Sussurrei ainda sentada.

Nestha não respondeu, tampouco Elain, ambas me avaliavam, mas olhavam com mais atenção para minha perna. Segui a direção desse olhar, a mão tremendo quanto toquei a camisola e ergui para ver. Elain puxou meu braço antes que pudesse ver.

- Por que não nos contou que estava machucada? - perguntou exasperada.

- O que? - Franzi a testa.

- Você. - Elain cruzou os braços. - Caiu em cima de lascas de madeira enquanto cortava lenha, parecia exausta. E mesmo assim no dia seguinte tentou caçar.

Encarei Nestha que me olhava em silêncio, sua feição fria não demonstrava nada, mas podia ver que tinha algo de errado.

- Onde está Feyre?

- Ah, Elle, Feyre foi tão sortuda - Elain disse com um sorriso. - Ela foi morar com uma tia distante, para cuidar dela. Lembra-se? Tia Ripleigh.

Não respondi, apenas encarei Elain esperando ela dizer que era uma brincadeira. Bom, ela não disse, apenas continuou falando sobre a suposta tia Ripleigh. Minha cabeça começou a doer em segundos.

- É melhor deixá-la agora, Elain - Nestha finalmente disse após tanto tempo em silêncio. - Vá, eu ficarei com ela por um momento.

Elain saiu como se fosse comum o comportamento de Nestha, acenando com a cabeça oferecendo um leve sorriso após deixar a bacia com água no pequeno armário ao lado da enorme cama.

- Você também se lembra, não é mesmo?

Assenti e parecia que um peso havia saido de seus ombros.

- O que aconteceu com Elain? - Apertei o lençol em meus dedos. - E a casa? Tudo isso, esses vestidos. Me diga como.

Era uma ordem clara, e pela primeira vez, Nestha não reclamou ao fazer, me contou detalhadamente, de como Vittório e Elain foram de desolados a nada, como estavam felizes por Feyre ter tido uma oportunidade tão boa quanto aquela de morar com uma tia rica o suficiente para que fome ela nunca mais sentisse, como achou que estava louca quando ninguém se lembrava e apenas ela, de como revirou a casa em busca do restante das minhas economias para comprar remédios.

Disse que fiquei desacordada por quase três semanas, curandeiros dizendo que não existia muitas esperanças pela gravidade da febre e do machucado que nunca curava. Quando um desconhecido apareceu a porta pedindo que Vittório investisse dinheiro, o que ele hesitou por ser uma oferta boa demais, mas concordou quando o estranho insistiu, logo ganharam um baú cheio de ouro e em pouco tempo conseguiram o suficiente para se mudarem, ainda não chovia dinheiro para eles, mas estava sendo o suficiente.

Eu me levantei, tropeçando em minhas próprias pernas enquanto mancava até o armário, não sabia se tinham roupas para mim ali, tampouco sabia se Nestha importou-se em fazer isso por mim, mas mesmo assim o abri. Vestidos encheram meus olhos, mas além disso, tinham as roupas perfeitas para alguém como eu; uma caçadora. Camisetas de linho, o tecido suave e leve, casacos e túnicas resistentes, cintos e botas, nada desgastado, nada velho... Nestha se importou.

- Onde está meu arco? - Perguntei me apoiando nas portas abertas.

- Não adianta, Elle, eu já tentei.

- Tentou?

- Contratei aquela mercenária para me levar até a muralha, mas não achei a passagem... É impossível.

Puxei uma camiseta de linho, me esforçando para tirar a camisola. Porém, Nestha me parou tocando meu braço.

- Você ficou deitada por um mês, não vai conseguir andar se for agora.

Cobri meus olhos com a mão, respirando fundo ao sentir a realidade, minhas pernas não tremiam, mas logo iam doer se começasse a andar agora e meus braços, se fizesse algum esforço sem treinar o costume antes, qualquer coisa na floresta seria capaz de me derrubar nesse estado.

- Vou partir em breve.

Nestha assentiu.

- Eu sei.

Olhei para ela, tão profundamente que quase podia ver sua alma, logo, fiz algo que não fazia há anos. Nestha arquejou com meu toque, surpresa por ter sido pega, eu a abracei, suspirando seu cheiro e sentindo a familiaridade que apesar de tudo, compartilhavamos. Não era meu sangue, mas era minha irmã, minha família.

- Obrigada - sussurrei quando Nestha relaxou e logo continuei: - Por ter cuidado de mim.

Daqui há alguns dias, eu partiria com uma nova promessa. Eu enfrentaria a floresta de novo e agora não por obrigação, mas por uma única sede de caça que cresceu em minha alma.

A Quarta Archeron | ᵃᶻʳⁱᵉˡOnde as histórias ganham vida. Descobre agora