Cap • 1

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Estranha e linda cidade, repleta de majestosas obras primas e acima de tudo, vida

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Estranha e linda cidade, repleta de majestosas obras primas e acima de tudo, vida.

Quando desembarquei pela primeira vez em terras francesas, me sentia um explorador, que queria fazer de todas as novidades grandes descobertas.

Era final dos anos 60, tinha muita coisa acontecendo nessa época, eu estava com os meus recém 20 anos de idade, e decidi ir para Paris por um ano para estudar francês, eu certamente posso dizer que aprendi de verdade, mas algo me deslumbrou mais do que a língua nativa, eu havia me tornado parte de uma espécie de maçonaria, a comunidade dos cinéfilos, ao qual chamávamos popularmente de “Fanáticos por filmes”.

Eu era um daqueles insaciáveis por cinema, dos que sempre chegava cedo e sentava na primeira fileira, com um sentimento egoísta de querer que as imagens chegassem em mim primeiro, para depois se propagar para as demais cadeiras e olhares, de espectador em espectador, até que se esgotasse e voltassem para a cabine do projetista.
Essa era minha rotina, para alguns monótona, para mim excitante.

Mas houve uma tarde...Era primavera de 1968, foi o ano em que a tela de projeção deixou de ser apenas uma tela e abandonou o cinema Panopticum, propagando-se pelas ruas, lá fora tudo pareceu mais claro, desde os interesses duvidosos até o conceito da cultura cinematográfica, foi o ano em que a censura gritou e dessa vez todos ouviram, a cultura ganhou mais arqui-inimigos do que apreciadores, parecia uma corrida e o bastão da vez era a liberdade.

A Cinemateca Francesa também ganhou sua visibilidade, mesmo sendo negativa, e teve seus filmes roubados pela ignorância do governo.

- Não se recebe liberdade! A liberdade se toma! – Gritou um dos jovens.

Era uma quinta feira, e dessa vez a audiência não ocupava as cadeiras do cinema e sim seu gramado, porque aqui todos amam filmes e não deixariam eles acorrentados daquela maneira, ali foi onde o moderno nasceu, foi onde eu conheci minhas primeiras paixões e velhos amigos nos rostos dos personagens, foi também quando eu fiz inimigos em cenas intensas, todos que passaram por aqui também criaram suas histórias e aqui aprenderam sobre arte.

Quem está por trás disto? A polícia, os representantes! E por isso que todos os cinéfilos de Paris tinham ido protestar, iniciou-se nossa própria revolução cultural.

- Com licença. Pode me tirar isto? Está preso em meus lábios – Uma voz que surgiu atrás de mim me fez virar imediatamente, era um garoto um pouco mais alto, ele tinha uma boina preta igual a uma boa parte dos franceses, cabelos negros, como a noite fria daqui, seus olhos eram bem puxados e seu rosto delicado, simpatizei bastante com essa primeira impressão.

- O que? – Indaguei retornando à realidade.

- O meu cigarro ele grudou, não posso tirá-lo – Olhei para suas mãos só agora percebendo que estavam acorrentadas ao portão de grade da cinemateca.

- Claro – Puxei o cigarro dos lábios fartos do rapaz, vendo sua expressão aliviada.

- O que você é? Britânico? – Questionou me analisando.

- Sim - Respondi rápido - O que me denunciou? – Perguntei fazendo-o sorrir.

- O sotaque, típico e inconfundível, meu nome é Macau, como se chama?

- Porchay - Pensei em um ato costumeiro apertar sua mão, mas rapidamente me recordei que estava acorrentada.

- Vem muito por aqui, né? Lembro de você, não fala com ninguém, senta na primeira fileira, cadeira do meio.

- Não sabia que alguém reparava em mim – Confessei sorrindo sem jeito.

- É meio difícil não reparar, até porque conheço todas as caras que assistem aos filmes bons – Justificou.

- Gostaria de dizer o mesmo, mas as únicas pessoas que vejo são as da tela, perdão – Pedi envergonhado e ele pareceu não se importar.

- Por que está sempre sozinho? – Foi direto. Olhei para os pés em sinal de timidez por está tendo aquela conversa com um estranho.

- Eu não conheço ninguém, por que está acorrentado aos portões? – Devolvi com outra pergunta e ele apenas riu.

- Mas eu não estou – Balançou os braços se libertando das correntes em um gesto teatral – Protestos precisam de exageros dramáticos ou do contrário eles não nos levam a sério.

- Serei obrigado a concordar.

- Você é interessante - Me olhou de cima a baixo, se aproximando - Deveria conhecer meu irmão Kim, ele é incrível, se quiser aprender sobre a verdadeira arte de Paris deve conhecê-lo.

- Não vejo a hora então.

Mais pessoas ocupavam o local, nos obrigando a ficar cada vez mais próximos para não sermos levados pelo mar de gente, o céu dava indícios de uma possível chuva, mas nem mesmo isso assustava os jovens, que pareciam querer morar por ali.

- Vai ficar para o debate? – Um rapaz mais alto e com os cabelos um pouco longos se aproximou dele.

- O que faremos? Vamos ficar? – Indagou o outro.

- Não sei ainda.

- Ah – Olhou de volta para mim lembrando-se da minha presença – Esse é o Kim a quem eu comentei, esse é o Porchay, ele é britânico.

- Olá - Cumprimentou simpático - Já vi você por aqui, estava em todas as sessões do Nicholas Ray – Comentou apertando minha mão.

- Não perdi uma única estreia - Sorri abertamente.

- "Rebel Without a Cause" - Citou um dos filmes - Notei que você veio a todas as reprises.

- Todas as seis vezes que passou – Proferi como se estivesse sendo pego em flagrante, arrancando um sorriso de ambos.

- Gostei muito dele – apontou para mim e logo depois disse ao irmão – Nicholas Ray é o cinema!

- O que está acontecendo? – Macau olhou em volta, e então notei um tumulto se formando, as pessoas começaram a sair e foi aí que avistamos os guardas, parecia um tsunami, como se quisessem nos engolir de uma vez só.

- Vamos! Não se separem de mim! – Gritou Kim, pegando em minha mão e na do irmão e começamos a correr.

Uma fumaça tomou conta da atmosfera, e guardas agrediam os presentes enquanto destruíam nosso protesto pacífico, não estávamos ali para guerrilhar, só queríamos ter voz, permanecemos correndo e ouvindo os gritos desesperados dos jovens.

- Fascistas!

- Bastardos!

- Filho da puta!

E foi dessa maneira que conheci Kim e Macau.

Eu podia ouvir meu coração batendo, não sabia se era porque a polícia estava me perseguido,

ou porque talvez agora eu pudesse dizer que tinha amigos.

Panopticum • PORCHAY/KIM/MACAUOnde histórias criam vida. Descubra agora