Capítulo 1

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Respiro fundo. É algo que tenho vindo a fazer naturalmente, mas só agora tomo consciência. Estou vivo, tal como o doutor Mason me garantiu. Nunca parei muito para pensar nisto. Embora vivesse com essa consciência, não tinha por hábito pensar no quão grato estava por pura e simplesmente poder respirar. Tomamos por garantida uma faculdade que nos pode facilmente ser roubada de um momento para o outro. Ainda assim, o meu problema era outro.

Antes da cirurgia, o medo de não acordar era muito. Como se soubesse que algo iria correr mal. Como se a anestesia, por alguma razão, não funcionasse no meu corpo. Afinal de contas, sempre fui defeituoso. Talvez este fosse apenas o teste final, aquele para o qual sempre me preparei e em que o meu corpo nunca tencionou passar.

Quando me injetaram o sedativo, pensei que não voltaria a ver este quarto de hospital. Oh, o quanto eu quis estar de volta a este quarto! Ver de novo as paredes brancas e o chão de um azul esquisito. Lembro-me de esse ter sido o meu primeiro pensamento quando aqui entrei há dois dias. A verdade é que nem sempre este ambiente é o pior. Nem sempre significa coisas más. Para mim, certamente não significou. Mas eu não sou o único que por aqui passou.

Estou acordado, e estou bem. Ou pelo menos, sinto-me bem. Normal. De volta à vida que sempre conheci. Ou que sempre julguei conhecer. E agora questiono, até que ponto conhecemos realmente a vida que vivemos? Porque enquanto fazemos as nossas atividades diárias, não pensamos que pode ser a última vez que as fazemos. Eu dei por mim a matutar sobre isso mais vezes do que seria de esperar para um rapaz de dezassete anos.

Contudo, e porque já não importa pensar nesses "e se's", percebo que posso finalmente correr, saltar, sair em aventuras sem ter medo que o meu coração ceda a meio. Durante anos, fui o miúdo esquisito que não podia fazer muita coisa. Passava os dias em casa, porque tudo era demasiado perigoso para o meu coração que, pura e simplesmente, não sabia ser coração. Teimava em bombear o sangue de forma estranha. Talvez tenha sido negligenciado, mas podia ser também apenas um caso de falta de atenção. Um pobre coração que só queria ser amado.

No entanto, agora, neste presente, neste quarto de hospital que nunca me trouxe tanta luz como neste hoje, consigo ver o futuro. Consigo rever a magia que a vida me roubara. Não tenho mais medo. Não receio a morte. Não tenho receio de não acordar. Dormir para sempre. Essa já não é uma possibilidade diária para mim. Encaro-a como quem encara um carro em movimento, sabendo que é um fantasma e é impossível ser atropelado. É com essa confiança que sei que vou viver daqui para a frente.

Quando tinha 13 anos, e logo após cair desmaiado na escola, os meus pais obrigaram-me a frequentar um grupo de apoio no hospital. Eram vários os miúdos com todo o tipo de problemas. Alguns bem mais graves que os meus. Lembro-me de pensar que era um sortudo no meio de crianças e jovens que tinham  a morte como algo certo. Comigo, nunca foi certo. Nem para a vida, nem para a morte. Era uma incerteza constante. Claro que isso também não é saudável. Não faz bem à nossa mente. Não nos ajuda a sonhar com o nosso futuro. Porque, para quê sonhar quando tudo pode acabar de um dia para o outro?

Ainda assim, dei por mim a ter a dita pena por todas essas almas perdidas. Destinadas ao fim. Nunca lhes disse tal coisa, embora eles já soubessem lidar com ela.

Na televisão, fazem sempre questão de mostrar miúdos revoltados, que conseguem lidar com tudo menos com essa pena. Pois, comigo - e posso apenas falar por mim - esse nunca foi um problema. A pena não me atingia, talvez porque eu próprio também a sentia por mim.

Porém, este é o meu agora. Esta é a minha nova realidade. Respiro bem fundo, sentindo o aroma a medicamentos no ar. Sinto-me aliviado, porque posso fazê-lo sem receios. Posso respirar fundo sem que o meu coração tenha vontade de parar.

Preparo-me para inspirar uma vez mais quando a minha felicidade é interrompida por um fungar constante. Consigo perceber que vem do corredor. Faço por ignorá-lo, mas é sufocante e começa a afetar a alegria dentro de mim. Quero poder ficar feliz em paz, sem qualquer tristeza como banda sonora.

Quando o som não cessa, observo os cateteres nos meus braços. Faço o que nunca pensei fazer, mas que sempre achei incrível nos filmes, e arranco-os. Imagino-me como um personagem rebelde num filme, prestes a fugir para se declarar ao amor da sua vida. Não é isso que vou fazer, contudo.

Levanto-me com cuidado da cama. Não coloco os pés no chão desde antes da cirurgia. Não sei o que é caminhar com este coração. E se, assim que pousar as plantas dos pés no azul esquisito do chão, cair desmaiado novamente? E se tudo tiver sido em vão? E se estiver destinado a grupos de apoio repletos de jovens prestes a morrer?

Do corredor, o barulho aumenta. Espreito, ainda apoiado na ombreira da porta. Ainda que agora possa ter certezas, o receio não abandona.

Encostado à parede e completamente sozinho, está um rapaz. Tem a cabeça apoiada nos joelhos e acaricia o cabelo com as mãos. Hesito ao ver o seu desespero. Estou feliz por mim, mas a tristeza deste rapaz não me é indiferente.

Aproximo-me calmamente para não o assustar.

‒ Está... está tudo bem?

Mas eu sou parvo? Claro que não está tudo bem. Ele está a chorar há vários minutos seguidos, e não tenta sequer escondê-lo. Só pode ser grave.

O jovem rapaz ergue a cabeça e encara-me. Nunca antes vi um rosto tão triste. Nem o meu, nem o das centenas de jovens que conheci com doenças terminais.

Sento-me ao seu lado, impedindo-me de dizer uma única palavra. A última coisa que quero é piorar a sua situação. Talvez ele só precise de um ombro amigo.

O rapaz continua a olhar-me, com as lágrimas a inundar-lhe o rosto. Assemelha-se a um lago num dia de inverno. Cinzento, escuro e sempre húmido.

Tento falar, mas não chego a ter oportunidade. Uma das enfermeiras chama-me à parte quando passa por nós. Não tenho a certeza se devo deixar este rapaz sozinho, no entanto ela parece séria e, por isso, sigo-a. O meu novo coração aperta-se à medida que me afasto do jovem esvaído em lágrimas.

‒ Não é boa ideia falares com ele - diz.

‒ O quê? Porquê? Eu sei que ainda não estou recuperado, mas...

‒ Não é isso. - Hesita por momentos, suspirando entretanto. O meu coração palpita e o medo de morrer regressa. Porém, nada acontece. - Aquele rapaz... a namorada dele teve um acidente e faleceu.

‒ Oh! Que mau! - Atinge-me. - Então é por isso que ele está tão triste.

‒ Sim. Mas não é por isso que não deves falar com ele. A questão aqui é que... ela era doadora de órgãos.

Engulo em seco com a informação. Uma única pinga de suor escorre-me pelas têmporas. Ela não pode estar a dizer o que eu penso que está a dizer. A pena que, entretanto se transformou em alegria, afirma-se agora como culpa.

‒ Tu ficaste com o seu coração.

E é aqui que a maior dor que já senti na vida me trespassa. Eu sou o causador do desespero do rapaz. Ele perdeu a pessoa que amava e eu roubei-lhe o coração.

Não sei o que é pior. Morrer porque o coração não sabe bater, ou matar quem já não tem corpo para viver.


Aqui está! O primeiro capítulo da minha primeira short story. Espero muito que gostem! Desta vez, vou esperar até atingirmos um certo número de estrelas para publicar o próximo. Será que conseguimos 5?

Digam-me também o que acharam deste primeiro capítulo. Quero saber tudo!

Helena

Coração que não sabe ser CoraçãoWhere stories live. Discover now