Capítulo 11

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4 anos antes

A sombra do grande carvalho oferecia-nos a brisa de que necessitávamos numa tarde de verão como aquela.

As nossas mãos não estavam unidas como da última vez. Desta vez, olhávamo-nos, em pé, frente a frente, com uns quantos raios de sol a tentar derrubar o negrume da ausência de luz. Debaixo do grande carvalho, a sombra roubava-nos da vitamina D de que tanto diziam que precisávamos. Mais o Evan do que eu. No entanto, aquele pequeno pedaço de terra, com algumas ervas daninhas, era o nosso mundo. O nosso humilde mundo, onde ninguém estava doente.

O Evan sorriu primeiro. Baixou a cabeça uns segundos e, quando voltou a subi-la, a expressão mudara.

‒ Está tudo bem? - perguntei.

‒ Mais do que bem. - Mostrou os seus dentes e os lábios gretados e brancos esticaram. Naquele mundo, ele não era doente. Tentava convencer-me disso sempre que olhava para ele.

‒ Will?

O azul dos olhos dele invadiu o meu castanho.

‒ Sim?

‒ Quando eu morrer, promete que me esqueces.

Senti uma carga de ar maior do que o normal a entrar por mim adentro e não sabia lidar com isso. O meu fraco coração abandonou a sua tarefa de bater por momentos. Receei que o momento tivesse chegado, mas segundos depois, eu continuava a respirar.

‒ O-o quê?

‒ Não quero ser um fardo para ti.

‒ Achas? Não és fardo nenhum...

Não consegui acabar.

‒ Já estou a ser, e eu não posso viver comigo mesmo sabendo que a minha morte te causará sofrimento. Por isso... - Inspirou e vi o quanto lhe custou aceitar o novo ar. - Promete-me. Assim que o meu corpo desistir, tu desistes também. Adeus, Evan!

‒ Eu... eu não quero.

Ele sorriu e ergueu o braço. Quando dei por ela, acariciava o meu cabelo. Observava os seus próprios movimentos enquanto penteava com os dedos os grossos fios.

‒ Vamos voltar a ver-nos. É um adeus temporário.

‒ Acreditas mesmo nisso? - interroguei, o medo a suar dos meus poros.

O Evan era mesmo bonito. O azul morto era apenas mais um pormenor que fazia dele uma coisa tragicamente bonita. Eu sabia, mesmo que não quisesse admitir, que ele tinha que morrer. E eu tinha que prometer.

‒ Prometo - pronunciei e, até hoje, não descortino como fui capaz.

Ele voltou a sorrir e, desta vez, parou de se focar no meu cabelo, descendo a mão para o meu rosto. Eliminou, por fim, o espaço entre nós. Os lábios gretados e esbranquiçados cortejaram os meus antes de criarem uma ligação maior.

Se eu podia morrer a qualquer momento, não seria este um momento a evitar? Mas se ele se arriscava todos os dias, principalmente ao deixar-se sentir quando sabia que o seu fim estava para breve, então o mínimo que eu podia fazer era arriscar com ele.

Eu tinha apenas 13 anos, mas imaginava que aquilo era beijar alguém com paixão. Nunca nada mexeu tanto comigo e com o meu estúpido coração como aquele momento. Como segurar a pele pálida do Evan, com ar de porcelana, capaz de se partir se a deixasse cair.

Senti-lhe o gosto a medicamentos na língua, e confesso que sonhei que éramos apenas dois miúdos apaixonados, sem doenças venenosas para nos levar.

‒ Obrigado por isto - disse quando nos afastámos.

‒ Porquê?

‒ Porque saíste do teu caminho para melhorar um bocadinho o meu.

Os cantos da minha boca levantaram.

‒ Ou os nossos caminhos cruzar-se-iam em qualquer lado - sugeri.

‒ Não. Teria que ser assim. - O Evan não parecia feliz. Como se sorrir fosse um enorme esforço e, ainda assim, ele estava sempre a fazê-lo. - Tu vais viver, Will! Vais ver coisas que eu nunca poderei ver. Viver o que eu nunca consegui viver. Mas mesmo assim, deste-me o que eu achei que nunca poderia ter. Obrigado por isso.

‒ Não vais morrer, Evan. - Aquilo era uma mentira. Eu sabia disso, e ele também.

‒ Está tudo bem, porque é o meu caminho. - Desviou o olhar por segundos, pedindo aos ramos da árvore que lhe dessem a coragem de que carecia. - Quando recebi o meu diagnóstico, chorei durante os primeiros dias. - Contorci-me com a ideia de o ver chorar. - Primeiro achei que merecia o que me estava a acontecer. Mas depois, revoltei-me. Porque é que um miúdo normal, saudável, de 13 anos, tinha que sofrer com aquilo? Desafiei a morte. Gritei para que se fosse embora noites a fio. Os meus pais ficavam à porta do quarto a ouvir-me suplicar. Eu não queria morrer, era simples. Mas o tempo passa, e as coisas não mudam. Percebemos que é o nosso próprio corpo que nos faz isto, não uma entidade qualquer. E, por isso, aceitei que a morte era a única saída. É a única maneira de fugir à doença.

Engoli em seco. Eu não concordava com nada do que estava a ouvir, mas entendia tudo o que o Evan me dizia.

Encostei a testa à dele e murmurei as únicas palavras que ele precisava de ouvir:

‒ Eu desisto por ti!


E vocês, desistiam?

Helena

Coração que não sabe ser CoraçãoWhere stories live. Discover now