4 anos antes
A sombra do grande carvalho oferecia-nos a brisa de que necessitávamos numa tarde de verão como aquela.
As nossas mãos não estavam unidas como da última vez. Desta vez, olhávamo-nos, em pé, frente a frente, com uns quantos raios de sol a tentar derrubar o negrume da ausência de luz. Debaixo do grande carvalho, a sombra roubava-nos da vitamina D de que tanto diziam que precisávamos. Mais o Evan do que eu. No entanto, aquele pequeno pedaço de terra, com algumas ervas daninhas, era o nosso mundo. O nosso humilde mundo, onde ninguém estava doente.
O Evan sorriu primeiro. Baixou a cabeça uns segundos e, quando voltou a subi-la, a expressão mudara.
‒ Está tudo bem? - perguntei.
‒ Mais do que bem. - Mostrou os seus dentes e os lábios gretados e brancos esticaram. Naquele mundo, ele não era doente. Tentava convencer-me disso sempre que olhava para ele.
‒ Will?
O azul dos olhos dele invadiu o meu castanho.
‒ Sim?
‒ Quando eu morrer, promete que me esqueces.
Senti uma carga de ar maior do que o normal a entrar por mim adentro e não sabia lidar com isso. O meu fraco coração abandonou a sua tarefa de bater por momentos. Receei que o momento tivesse chegado, mas segundos depois, eu continuava a respirar.
‒ O-o quê?
‒ Não quero ser um fardo para ti.
‒ Achas? Não és fardo nenhum...
Não consegui acabar.
‒ Já estou a ser, e eu não posso viver comigo mesmo sabendo que a minha morte te causará sofrimento. Por isso... - Inspirou e vi o quanto lhe custou aceitar o novo ar. - Promete-me. Assim que o meu corpo desistir, tu desistes também. Adeus, Evan!
‒ Eu... eu não quero.
Ele sorriu e ergueu o braço. Quando dei por ela, acariciava o meu cabelo. Observava os seus próprios movimentos enquanto penteava com os dedos os grossos fios.
‒ Vamos voltar a ver-nos. É um adeus temporário.
‒ Acreditas mesmo nisso? - interroguei, o medo a suar dos meus poros.
O Evan era mesmo bonito. O azul morto era apenas mais um pormenor que fazia dele uma coisa tragicamente bonita. Eu sabia, mesmo que não quisesse admitir, que ele tinha que morrer. E eu tinha que prometer.
‒ Prometo - pronunciei e, até hoje, não descortino como fui capaz.
Ele voltou a sorrir e, desta vez, parou de se focar no meu cabelo, descendo a mão para o meu rosto. Eliminou, por fim, o espaço entre nós. Os lábios gretados e esbranquiçados cortejaram os meus antes de criarem uma ligação maior.
Se eu podia morrer a qualquer momento, não seria este um momento a evitar? Mas se ele se arriscava todos os dias, principalmente ao deixar-se sentir quando sabia que o seu fim estava para breve, então o mínimo que eu podia fazer era arriscar com ele.
Eu tinha apenas 13 anos, mas imaginava que aquilo era beijar alguém com paixão. Nunca nada mexeu tanto comigo e com o meu estúpido coração como aquele momento. Como segurar a pele pálida do Evan, com ar de porcelana, capaz de se partir se a deixasse cair.
Senti-lhe o gosto a medicamentos na língua, e confesso que sonhei que éramos apenas dois miúdos apaixonados, sem doenças venenosas para nos levar.
‒ Obrigado por isto - disse quando nos afastámos.
‒ Porquê?
‒ Porque saíste do teu caminho para melhorar um bocadinho o meu.
Os cantos da minha boca levantaram.
‒ Ou os nossos caminhos cruzar-se-iam em qualquer lado - sugeri.
‒ Não. Teria que ser assim. - O Evan não parecia feliz. Como se sorrir fosse um enorme esforço e, ainda assim, ele estava sempre a fazê-lo. - Tu vais viver, Will! Vais ver coisas que eu nunca poderei ver. Viver o que eu nunca consegui viver. Mas mesmo assim, deste-me o que eu achei que nunca poderia ter. Obrigado por isso.
‒ Não vais morrer, Evan. - Aquilo era uma mentira. Eu sabia disso, e ele também.
‒ Está tudo bem, porque é o meu caminho. - Desviou o olhar por segundos, pedindo aos ramos da árvore que lhe dessem a coragem de que carecia. - Quando recebi o meu diagnóstico, chorei durante os primeiros dias. - Contorci-me com a ideia de o ver chorar. - Primeiro achei que merecia o que me estava a acontecer. Mas depois, revoltei-me. Porque é que um miúdo normal, saudável, de 13 anos, tinha que sofrer com aquilo? Desafiei a morte. Gritei para que se fosse embora noites a fio. Os meus pais ficavam à porta do quarto a ouvir-me suplicar. Eu não queria morrer, era simples. Mas o tempo passa, e as coisas não mudam. Percebemos que é o nosso próprio corpo que nos faz isto, não uma entidade qualquer. E, por isso, aceitei que a morte era a única saída. É a única maneira de fugir à doença.
Engoli em seco. Eu não concordava com nada do que estava a ouvir, mas entendia tudo o que o Evan me dizia.
Encostei a testa à dele e murmurei as únicas palavras que ele precisava de ouvir:
‒ Eu desisto por ti!
E vocês, desistiam?
Helena
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Coração que não sabe ser Coração
Short StoryWill recebeu um novo coração. Não há sentimento melhor que este de saber que há uma chance de sobreviver. Contudo, quando Henry surge na sua vida, as memórias do passado esquecido vêm à tona. E se o novo coração de Will não aguentar?