Capítulo 5

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O sol brilha como habitualmente. Reconheço-lhe os raios, embora me pareçam mais quentes agora do que antes. Antes do meu transplante. Parece mais dramático dito dessa maneira, como se fosse uma coisa tão definitiva como realmente é. Mas, para mim, soa a falso, embora me tenha salvo a vida. Não há um antes e um depois do transplante, como há um antes e depois dos meus 13 anos.

Coço o couro cabeludo quando começo a sentir o ardor a atravessá-lo. Os ares de maio entusiasmam-me pela primeira vez, e deixo-me contagiar pela paz que traz. Há muito tempo que não sentia esta vontade de viver.

Parece irónico, não é? Ou talvez não pareça. Talvez seja mesmo irónico. O meu coração não sabia ser coração, mas eu também não queria que fosse. Não desde o maior desgosto da minha vida.

‒ Will! - uma voz interrompe os meus pensamentos.

O Henry aproxima-se com um sorriso honesto no rosto. Questiono-me se há algum pingo de felicidade nele, ou se é apenas mais uma máscara.

‒ Disseram-me que estavas cá fora. E já agora, houve uma enfermeira que agiu de forma muito estranha quando perguntei por ti.

‒ Deve ser a Laura. Ela tem as suas razões - digo, e mordo a língua de seguida. "As suas razões" são válidas, e eu devia ouvi-la.

‒ Ok. Tanto faz. Como estás hoje? Pareces melhor. Menos pálido, digo.

‒ Eu estava pálido nos outros dias?

‒ Um bocadinho. - Ri. - Mas acredito que seja normal. Ainda te estás a habituar ao novo coração.

O meu peito contrai-se, mas depois lembro-me de lhe ter dito que tinha um novo coração. Apenas metade da verdade.

‒ Então, é para darmos um passeio? - pergunta o Henry.

Olho em redor, pousando os olhos nas flores do jardim do hospital e em todos os outros doentes que repousam nos bancos espalhados na terra, absorvendo o sol tal como eu. Ao fundo, denoto uma sombra, mas não consigo discernir as suas redondezas.

‒ Queres dar um passeio no jardim do hospital? - Mantenho um trejeito duvidoso no rosto.

‒ Enquanto não podes sair. - Sorri e apanha-me as mãos, pousadas no colo. Faz força para que me levante e eu faço-lhe a vontade.

Caminhamos calmamente por entre as rosas e as orquídeas e consigo avistar a Laura a observar-nos junto à porta que dá acesso ao corredor interior. Lança-me um olhar fulminante e quase consigo ouvi-la murmurar que volte para dentro e deixe o Henry sozinho, mas ignoro-a e puxo-o para trás da única árvore do sítio.

Ele ri, mas fita-me, confuso.

‒ O que é que se passa?

‒ Estava ali a Laura, e quase me matava com o olhar.

‒ Ah, a temível Laura que "tem as suas razões" para nos querer afastados.

Baixo a cabeça e ele percebe que se calhar eu entendo bem essas razões.

‒ Ei! Will, que razões são essas?

Sinto o suor a escorrer pelas costas abaixo. Passo-lhe a mão, na esperança que isso apague o que fiz.

‒ Não sei, Henry. As razões são dela - respondo, fingindo-me desinteressado.

‒ E porque é que eu acho que sabes? - Cruza os braços em frente ao tronco e eu mordo o lábio com a imagem.

É agora! É agora que ele descobre tudo.

‒ Tem calma! - Descompõe a posição e abre-se num grande sorriso. - Estou a brincar contigo. Parece que o coração novo funciona bem.

‒ Ah? Porquê?

‒ Porque parecia que tinhas visto um fantasma. - Empurra-me um ombro e sorri.

Sorrio com ele, porém não perco o nervoso miudinho, próprio de quem está numa situação como a minha.

Rodo sobre mim mesmo e espreito de novo para a entrada do edifício. A Laura já não está lá.

‒ Anda. Podemos continuar o nosso passeio - digo ao Henry. Preparo-me para retornar à imensidão de flores que animam o espaço.

‒ Espera, Will! - Pausa e olha para as suas mãos, brincando com os anéis que traz. - Achas que... achas que alguma vez serei capaz de viver uma vida sem ela?

A pergunta leva-me de volta ao passado, mas reprovo os pensamentos e atento nele.

‒ Acho que sim. Um dia.

Ele levanta os cantos da boca ligeiramente.

‒ Um dia. - Agarra a minha mão e puxa-me para o jardim, onde continuamos o nosso passeio.


Quero saber o que estão a achar até agora. Contem-me tudo.

Helena


Coração que não sabe ser CoraçãoWhere stories live. Discover now