Lembranças Corrompidas - Parte 1

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  _ Diaz... Acorda... DIAZ...
  O pequeno garoto possuía um sono pesado, tão profundo que nem mesmo o tapa da garota o fez acordar.
  _ A gente vai se atrasar... De novo...
  A voz que tentava acordar a criança, vinha de uma garota que agora andava de um lado para o outro no pequeno quarto, impaciente com o sono do irmão.
  _ Eu vou ter que fazer isso... De novo!
  Enquanto o garoto estava totalmente apagado na cama, a garota apressou o próprio passo, saindo pela única porta do quarto pequeno. Passou-se quase um minuto quando ela retornou, segurando um copo de madeira clara, cheio de água fresca.
  _ Diaz... Essa é a sua última chance! Acorda!
  Irritadíssima, a garota despejou todo o líquido frio no rosto do menino, que basicamente pulou da cama, assustado com o que estava acontecendo e ainda um pouco atordoado pelo próprio sono.
  _ Que você fez, Leny? – Ele nem olhou para garota enquanto falava, já que a sua preocupação era secar o amontoado de roupa que usava como travesseiro.
  _ O que você acha? – Leny se virou, e começou a juntar uns lápis e cadernos, dentro uma pequena bolsa de couro bem escuro, que estava acima de sua cama – Como alguém pode dormir tanto?
  _ Eu estava cansado.
  Os olhos do garoto realmente mostravam um cansaço anormal. Eles estavam fundos, e algumas olheiras ameaçavam surgir.
  _ Você ainda parece cansado. Aconteceu alguma coisa?
  _ Acho que eu tive um pesadelo.
  _ Com o que você sonhou dessa vez?
  _ Eu estava em uma floresta escura... mas, a lua brilhava forte, sabe?!
  _ Foi aquele mesmo sonho?
  _ Foi muito parecido. Tinha alguma coisa me perseguindo. Era como se a própria morte quisesse me pegar, e, quando ela estava quase me agarrando... eu acordei!
  _ Você tem que parar de ficar ouvindo as histórias que os “poetas” contam no pátio! – a garota terminou de arrumar as suas coisas, e, seguiu em direção da porta do quarto, para sair dali – Não demora muito pra se arrumar, porque hoje é o primeiro dia do festival que vai ter aqui no orfanato!
  _ Eu tinha até me esquecido dessa chatice...
  _ Não fala assim! – ela fechou a cara, claramente incomodada com a frase – Não esquece que se alguém te ouvir, você vai ser punido.
  _ Tá bom!
  _ Vou te esperar no pátio. Tchau.
  _ Tchau...
  Diaz se sentou em sua cama, enquanto a menina saía pela porta do quarto. Ela estava mais arrumada do que o normal. Seu cabelo estava amarrado com uma fita azul, formando uma longa trança em suas costas, e Leny usava um longo vestido preto, com algumas marcas de uso, mas, nada que tirasse a sua beleza.
  Antes de sair, a menina apontou para um conjunto de roupas, que estava dobrado em cima de uma cadeira aos pés da cama dele. O conjunto se tratava de uma calça social preta, e uma camisa azul de manga curta, ambas as peças também possuíam marcas de uso.
  _ Não são as mais novas, mas, com toda a certeza, são as melhores que eu tenho.
  Diaz não estava com pressa para se vestir. Ele detestava quando havia algum evento no orfanato, pois, eles eram proibidos até de brincar normalmente. Ele gostava de falar que todas as crianças viravam fantoches nesses dias, porque os adultos só queriam agradar outros adultos mais ricos que eles.
  _ Se isso pelo menos ajudasse a gente...
  Não era segredo para ninguém, que, apesar de todo dinheiro que recebiam nesses eventos, o orfanato não ficava com a maior parte dele. Uma parte era gasta nas dívidas do prédio, ou o próprio diretor pegava uma parte para si, sobrando assim, uma pequena parte para as crianças.
  Após se vestir, Diaz só precisava encontrar seu sapato preto, que, infelizmente, era o único que tinha para esses eventos. Ele buscou em baixo de sua cama, desejando que não houvesse nenhum pontiki junto dele. Felizmente, embaixo de sua cama só havia seus sapatos e uma muda de roupas, que precisava de ser lavada com urgência.
  (Pontiki: rato)
  _ Vamos?
  Antes de sair, o garoto pegou um pequeno espelho na cama da irmã, e começou a arrumar os pequenos cachos que seu cabelo criava durante a noite. Ele sempre perdia alguns minutos após acordar, apenas passando um pente pelo cabelo, para desfazer todos os cachos em seu cabelo. Diaz achava aquilo um incômodo, e, queria muito ter um cabelo mais normal para uma criança.
  Quando saiu de seu quarto, o corredor estava como havia imaginado. Todas as crianças estavam vestidas combinando, sempre com a cor principal sendo azul ou preto, e, os professores e as faxineiras, estavam andando de um lado para o outro, com muita pressa, fazendo uma bagunça pelo caminho afora. Ao contrário das crianças, todos os adultos possuíam roupas diferentes, e, suas cores, pareciam representar a sua função dentro do orfanato.
  Diaz ficou tonto só de olhar para aquelas pessoas andando de um lado para o outro.
  _ Faz quanto tempo que você não usa essa roupa? – Surgindo do meio da multidão azul, um garoto ruivo, completamente vestido de preto, se aproximou de Diaz, o acompanhando até o pátio.
  _ Fenrir! Pensei que você não ia aparecer hoje! – Quando o outro garoto se aproximou, Diaz soltou um sorriso longo, e o abraçou com muita força.
  _ Eu sei que você não gosta muito desses eventos. – No meio do abraço, Fenrir mexeu nos cabelos do garoto, bagunçando um pouco seu penteado. – E você sabe bem que eu não vou abandonar você e a Leny.
  Um arrepio passou pelo corpo de Diaz, mas, este o ignorou, achando que era apenas por causa do abraço do amigo.
  _ Por falar nela, cadê a Leny? – Ao se soltar do abraço, Fenrir se afastou um pouco, e procurou pelo rosto da garota no meio da multidão de crianças e adultos.
  _ Ela saiu primeiro que eu. Provavelmente, já deve de tá lá no pátio.
  _ Entendi. Então vamos?
  _ Pode ser.
  Enquanto caminhavam, os dois garotos começaram a conversar sobre assuntos diversos, como, por exemplo, as comidas que teriam durante o evento, ou quem apareceria para tocar algum instrumento, ou, até mesmo, quais tipos de apresentações haveriam durante aqueles dias.
  Diaz parecia cada vez mais incomodado com alguma coisa, à medida que dava mais um passo.
  _ Fala, o que foi dessa vez?
  _ Não é nada, Fenrir.
  _ Você nunca foi bom para mentir, então me fala logo.
  _ Essas vozes não estão te incomodando?
  _ Eu nem estava prestando atenção nelas.
  Os dois garotos estavam caminhando pelo meio do corredor, e, estranhamente, todos que passavam pelo mesmo caminho, pareciam se afastar de ambos, como se houvesse algo de errado neles. Essas mesmas pessoas sussurravam frases incompletas enquanto se afastavam, e, entre uma criança e outra, Diaz conseguia entender poucas palavras, como: “O que ele faz aqui...” ou “ele não faz parte daqui...”, e, até mesmo “Por quê?... Ele é errado. Ele não é daqui...”
  _ Como não? Mais uma vez, eles estão falando mal de você!
  _ Eu tenho uma sensação de que esse não é o problema!
  _ Como assim?
  _ Eu não sei te explicar, Diaz, mas, eu acho que tem algo de errado nesse lugar.
  _ Eu também não gosto deste orfanato. Você tem muita sorte de ter um sobrenome. Sinceramente, eu nem sei o que você faz aqui.
  _ Nem eu sei.
  Depois de alguns minutos caminhando em passos lentos, os dois garotos chegaram ao fim do longo corredor, que dava vista a uma grande porta dupla de madeira avermelhada. A luz natural do dia iluminava o mundo do lado de fora, e, ao mesmo tempo, atrapalhava a visão deles, por causa da diferença de claridade de onde estavam.
  Eles ainda não enxergavam o pátio do orfanato Star, pois este era um nível abaixo dos quartos, e era necessário descer uma escada não muito grande para chegar no espaço aberto. Mas, antes mesmo de atravessarem a grande porta, Diaz percebeu que havia algo de errado.
  Não havia barulho vindo de fora.
  Só um profundo silêncio vinha do lado de fora daquele lugar.
  Nem mesmo os pássaros faziam qualquer ruído.
  _ Fenrir... Tem algo de errado lá fora e...
  Diaz se virou, buscando o rosto do amigo, mas, estranhamente, o outro garoto havia sumido. Não só ele, mas, Diaz se encontrava sozinho naquele longo corredor, que agora estava mais escuro do que antes.
  Ele tentou gritar, mas, apesar dos ecos de sua voz, ele não recebeu resposta algum, ou, pelo menos, foi o que pensou.
  Do fundo do corredor, vindo do ponto mais escuro do lugar, um som leve ressoou, como se algo caísse ao chão. Um segundo se passou, e o som se repetiu, dessa vez mais alto. Aquele som continuou a se repetir, tornando cada vez mais alto, como se passos estivessem se aproximando dele.
  O garoto se encontrava em um ponto zero assustador.
  De um lado, havia a luz do dia, mas, um silêncio aterrador...
  E, do outro, a escuridão sedutora, e um som distinto que se aproximava...
  O garoto estava no meio daquele dilema. Um lado o inquietava, e o outro, o assustava.
  O barulho vindo da escuridão se tornava cada mais próximo, e, a escuridão parecia se aproximar dele com muita velocidade. A única luz que se mantinha no corredor, vinha do pátio.
  Direcionado pelo seu próprio medo, Diaz deu alguns passos para trás, se afastando do corredor, e saiu pela grande porta, ainda de costas para o pátio. No momento em que a luz do sol tocou em seu corpo, um leve arrepio percorreu por sua pele, e o barulho que vinha de dentro orfanato, simplesmente sumiu.
  Agora só lhe restava o silêncio. Aquele maldito silêncio.
  Diaz tinha medo de se virar.
  Diaz apenas encarava o corredor escuro.
  Diaz não sabia o que devia fazer.
  Mas...
  No fundo de sua consciência...
  Uma voz chamava...
  Uma garota repetia várias e várias vezes o seu nome...
  Ela chorava...
  Ela gritava...
  Desesperada...
  Com medo...
  Com dor...
  Mas, não se passaram nem alguns segundos, e a voz sumiu gradativamente. Mais um vez, apenas o silêncio restou. O silêncio, e uma dúvida.
  A garota se calou...
  Ou...
  Ela foi calada?

  Outro arrepio passou pelo corpo do garoto, dessa vez mais intenso, e, como um vento gélido, ele sentiu que algo puxava seu rosto, para que olhasse o que estava no pátio, atrás de si. Ele tentou resistir, mas, o seu medo, e a sua vontade de ficar imóvel não foram o suficiente.
  Vagarosamente, ele se virou junto daquele leve vento, e, caiu de joelhos ao ver aquela cena... Aquela cena perturbadora... Aquela cena que assombraria todos os seus sonhos dali pra frente...
  No meio do pátio, caído entre o grande jardim no centro, havia um corpo. Ele não queria acreditar, mas, o laço azul no cabelo daquela criança fez com que seus olhos enchessem de lágrimas e o desespero tomou do conta do seu corpo.
  Ele tentou gritar, mas, a sua voz não saiu.
  Ele tentou andar, mas, seus pés não se moveram.
  Ele tentou fazer qualquer coisa, mas, seu corpo não mais o obedecia.
  E ele só pôde olhar de longe, o corpo da sua irmã já sem vida.
  Ela estava sangrando. Haviam vários cortes em seu corpo e, o seu vestido, também estava rasgado pela metade. O cabelo dela também estava bagunçado e manchado de sangue.
  Curiosamente, as flores em volta estavam intactas, e pareciam tentar cobri-la, protegendo aquele corpo inocente, da maldade que ainda restava no mundo.
  Diaz sabia o que tinha acontecido. É claro que ele sabia. Não tinha como ele não saber.
  Ele viveu aquela cena muitos anos atrás, mas, havia sido diferente. Sua irmã não tinha sido morta no pátio, mas, sim, dentro de seu quarto,. A única coisa que estava igual, era o estado do corpo dela, e o fato dele ter chegado tarde demais.
  Diaz se lembrou de tudo.
  Diaz se lembrou de fugir do orfanato meses depois da sua morte. Diaz lembrou de viver no porto junto de Nick, que também tinha fugido do orfanato. Diaz se lembrou de todas as brigas que ele teve nos becos do porto. Ele se lembrou daquela faca. A maldita faca que causou a cicatriz em sua mão. Ele sabia que havia algo de estranho, pois uma cicatriz não se fecha tão rápido! Mas, como ele imaginaria que seria o resultado de uma benção? Ele não queria ter que passar por tudo aquilo. Diaz se cansou de viver. Ele só queria encontrar a morte. Ele não queria mais lutar.
  “Pensei que você resistiria por mais tempo!”
  _ O quê? Quem é você?
  “Por que você é tão burro, garoto? Você recebeu os poderes da Morte, e, ainda assim, você deseja morrer? Não sei se isso é uma grande ironia, ou, uma grande hipocrisia!”
  _ Eu nunca pedi por isso!
  “Tem certeza? Seu choro, durante todas aquelas noites, todos aqueles dias, me disseram o contrário!”
  _ Como assim?
  “Você acha mesmo que eu estou contigo desde quando? Garoto, a Morte se aproxima da morte! E, depois da sua irmã, sua alma morreu várias e várias vezes, a cada dia e a cada noite que se passava! Você desejava a morte. Você não queria mais viver sem a sua irmã! Você tentou se matar diversas vezes, mas, você nunca conseguiu. Por quê?”
  _Talvez algum dos deuses, esteja gostando de me ver sofrendo!
  “Pode ser! Todos os grandes deuses são tão egoísta, que fariam de tudo para o seu próprio bem ou entretenimento!”
  _ E quem é você? Por que você não aparece?
  “Olha para a sua mão esquerda.”
  A mão de Diaz estava diferente. Apesar de ainda estar no seu corpo de criança, a sua mão parecia mais velha. E uma tatuagem negra, em formatos de espirais tribais cobria o seu punho, indo até o seu ombro, e entrando pela manga da sua camisa. No dorso da sua mão, ao centro de todas aquelas linhas, havia um símbolo diferente. O símbolo de uma foice, que, cravava em sua própria pele.
  “Você quer saber quem eu sou? Ou você quer saber quem eu fui? Melhor ainda, por que eu te escolhi? Todas essas perguntas, serão respondidas! Mas, por enquanto, saiba que sou apenas um pedaço... uma peça... um fragmento do que a Morte já foi um dia... Eu sou apenas o fragmento dele que ainda vive dentro você. Se você quer respostas, basta encontrar os outros fragmentos!”
  “Mas, primeiro, você tem que sair desse lugar! Essas memórias corrompidas estão te prendendo aqui, e, você deve se livrar delas!”
  _ Como eu faço isso?
  “Quando eu vier atrás de você... E eu prometo que vou vim... Mas, quando eu vier até você... Não fuja!”
  _ Só isso? Muito fácil! Mas, como eu vou saber que é você?
  “Sabe aquilo que vinha da escuridão, seguindo pelo corredor até você?”
  _ Então é só eu não fugir da próxima vez?
  “Não é tão fácil assim.”
  _ Por quê?
  “Por que quando você acordar desse ‘sonho’, você não vai se lembrar de nada!”
  “Boa sorte, Diaz, e, creia que a Morte te procura...”

Fragmentos Da MorteWhere stories live. Discover now