Lembranças Corrompidas - Parte 2

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  “São necessários quantas badaladas, até que alguém acorde de um sono profundo?”


  _ E o que aconteceu mesmo, garoto? – Talvez fosse o estresse acumulado, ou o momento incômodo, ou, simplesmente, uma dor de cabeça repentina, mas, a voz daquela mulher simplesmente parecia dizer para o garoto sumir da sua frente.
  _ Eu já falei milhares de vezes!
  _ E, ainda assim, a sua historinha besta não me convenceu. Não sei o que você tem de tão especial, ao ponto da diretora me mandar cuidar de você pessoalmente!
  _ Talvez a morte da minha irmã não tenha sido culpa minha?!
  _ Todos nós sabemos que você não seria capaz de matar alguém, já que nem pra isso você tem utilidade! Mas, forjar uma acusação para um dos maiores nobres de Típhia já é passar de um limite incalculável. Você entende o que vai acontecer com este orfanato se a gente registrar o seu “testemunho”?
  _ Mas...
  _ Não existe uma segunda opção! Ou você dar um testemunho diferente, ou nada vai acontecer!
  _ Mas... foi aquele nobre esnobe que matou e... você sabe bem o que mais ele fez com ela!
  _ Diaz, me escuta com atenção! Você é muito novo para entender isso, mas, aquele homem, tem dinheiro suficiente para demolir este lugar em um estalar de dedos! Pensa comigo, quantas crianças ficariam sem um lugar para dormir se você abrir a merda da sua boca!
  _ Bem que esse lugar de merda poderia sumir do mapa...
  A mulher que estava sentada do outro lado da mesa, na frente do garoto, se levantou silenciosamente e foi em direção a única porta do cômodo em que estavam.
  _ Garoto... Não me força a te expulsar do Star! Se não estivesse em luto, você já estaria dormindo com os ratos nos becos e esquinas de Típhia! Então, some daqui, e quando eu me acalmar, mando te chamarem. Entendido?
  O garoto de olhos marejados, levantou da cadeira em que estava assentado, e, sem dizer qualquer palavra, saiu pela porta, que logo foi fechada com muita força atrás dele.
  Diaz não sabia o que fazer. Uma raiva silenciosa preenchia seu coração, causando até uma forte dor cabeça nele.
  Sua irmã estava morta. Ele viu ela morta, e aquele homem... Sua cabeça doía mais toda vez que se lembrava daquela cena nojenta. O coração jovem dele acelerava com a lembrança daquele dia e até sua respiração falhava. Mas, o que mais causava ansiedade e repulsa em sua mente, era saber que independente do que ele falasse, ou com quem falasse, aquele homem sairia impune, como se nunca tivesse encostado um dedo na sua irmã.
  _ Nojentos! – caminhando pelo corredor do orfanato, o garoto pode ver os olhares de pena que alguns adultos lançavam para ele, o que só o deixava cada vez mais irritado – Não preciso da “peninha” de vocês! Ninguém aqui pode me ajudar!
  _ Conversando sozinho mais uma vez, Diaz?
  Em frente de uma das muitas portas que haviam naquele corredor, surgiu um garoto maior que Diaz, que, apesar da feição de deboche, parecia falar com uma certa mansidão.
  _ Some da minha frente, Higor. Não estou com paciência para você hoje!
  _ Eu soube o que aconteceu com a Patric... com a sua irmã. É uma chatice como os adultos sempre fazem o que querem, né?
  _ Infelizmente, algumas crianças também acham que são adultos!
  _ Eu tô me esforçando para ser amigável com você. Então, por favor, colabora um pouco dessa vez, pode ser?
  _ Ao invés de gastar seu tempo comigo, por que você não procura outra pessoa pra você infernizar?
  _ Quer saber, morre de uma vez. Sinceramente, eu até entendo essa sua raiva, mas, pela primeira vez eu estou tentando não pegar no seu pé, mas, já que você não quer aceitar, eu também não vou perder meu tempo com você. – dando as costas para Diaz, o garoto seguiu na direção contrária dele – E, já que você quer dessa forma, é melhor você não aparecer na biblioteca amanhã, entendeu?!
  _ Babaca...
  “Por que todos estão fingindo que se importam?”, “Ninguém nunca nem me perguntou se eu precisava de algo! Agora todos fingem que me conhecem!” – Os pensamentos do garoto estavam caóticos, mas, não era uma bagunça que os deixava assim, e sim aquela raiva que ele lutava para reprimir.
  _ Ótimo, era o que faltava! – Ele resmungou para si mesmo, enquanto batia a mão direita contra uma parede, no momento que uma câimbra começava a travar seu movimento. – Por que minhas mãos sempre travam quando eu fico assim? Que chatice!
  _ Isso se chama estresse. Você precisa se acalmar um pouco, Diaz!
  _ É muito fácil falar, o difícil é colocar isso em prática, Fenrir! – Ele não sabia como o outro garoto havia chegado perto dele, mas, sua mente estava tão distraída que aquilo não pareceu incomodá-lo. – O que você quer, Fenrir?
  _ Nada de mais. Só queria ver como meu melhor amigo está! Eai, vamos comer alguma coisa?
  _ Você nem deveria estar aqui... – um sussurro baixo saiu da boca de Diaz, mas, felizmente, Fenrir não pode entender o que ele disse.
  _ O que foi?
  _ Nada não. Minha cabeça tá muito ruim, parece que falta um pedaço de mim. Não sei explicar.
  _ Eu entendo o que você quer dizer. Pode parecer que não, mas, eu te entendo muito bem.
  “A escuridão ainda te chama...”
  _ Você disse alguma coisa, Fenrir?
  _ Acho que não, por quê?
  _ Nada não, acho que eu ouvi uma voz me chamando!
  _ Era o que me faltava! Meu amigo enlouqueceu! – Sorrindo, o garoto segurou Diaz pelo pescoço embaixo de seu braço, e começou a esfregar seu cabelo.
  _ Me solta, idiota! – com um pouco de esforço, Diaz conseguiu se soltar, e, antes que pudesse impedir, uma risada leve saiu de sua boca – Só você mesmo para me fazer rir em um momento desse!
  “Só a escuridão é real...”
  _ É meio vergonhoso ver você falando assim, mas, pode sempre contar comigo, Diaz!
  “Essa luz... é falsa... A escuridão te chama!”
  Diaz se virou assustado, encarando o longo corredor atrás de si, e teve uma sensação familiar, como se algo se aproximasse dele rapidamente.
  _ O que foi, Diaz? – Ferir seguiu o movimento do garoto, mas, sua expressão confusa mostrava que ele sequer sabia o que estava acontecendo.
  _ Não é nada demais. Só sentir como se tivesse algo se aproximando de mim! – Ele se virou um pouco cauteloso, e voltou a caminhar pelo corredor.
  _ Talvez realmente exista algo lá...
  _ Como assim?
  _ Desculpa, eu não quis te assustar! Uma professora me contou uma história assustadora outro dia, que falava sobre um monstro terrível que vive na escuridão das salas e corredores do orfanato!
  “Escuridão...”
  _ E você acredita nessas coisas?
  _ Eu não! Mas, por precaução, já faz alguns dias que eu durmo com a luz acesa. – uma leve risada acompanhou a fala do garoto, como se ele estivesse rindo de si mesmo.
  _ Você é estranho, Fenrir!
  _ Nós dois somos...
  _ Bem, é verdade!
  Ambos começaram a rir enquanto caminhavam, e, por alguns segundos, Diaz esqueceu de toda loucura que viveu recentemente. Pelo menos até chegar na grande porta que levava até o pátio do orfanato.
  _ Espera, a gente não estava caminhando até os quartos? – o garoto parecia confuso.
  _ Eu estava só te seguindo, Diaz.
  _ Como a gente chegou aqui?!
  _ Espera... como assim? Você veio até aqui! Todo esse tempo você tava caminhando pra cá!
  _ Não, não, não, eu queria ir em direção ao meu quarto!
  _ Por quê? Não foi lá que sua irmã foi morta?
  _ Não sei o porquê, mas, lugares abertos estão me dando calafrios!
  _ Deixa de ser idiota! Já que a gente tá aqui, vamos lá pra fora pegar um solzinho!
  _ Você não queria comer alguma coisa? Os refeitórios ficam depois dos quartos!
  _ Sim, é verdade, mas, já que a gente já tá aqui, por que não ficamos um pouco mais?
  “A escuridão te chama... Não se esqueça... Você tem que se lembrar...”
  _ Me desculpa, Fenrir, mas, eu preciso ir até meu quarto. Alguma coisa tá me chamando pra lá!
  _ Eu te entendo, Diaz, como eu disse antes: eu te entendo.
  _ Obrigado, então eu vou indo e...
  _ Eu te entendo, Diaz, mas, não posso deixar você fazer isso!
  _ Espera... Como assim?
  O garoto não recebeu uma resposta, e o silêncio reinou entre eles por alguns segundos, até um estalo pôde ser ouvido por Diaz, enquanto a cabeça do seu amigo de virava lentamente em sua direção, até que seus olhos se encontraram, por mais que o corpo dele ainda estivesse virado para frente.
  _ Eu não posso deixar que você se encontre com a Morte mais uma vez.
  “A escuridão te chama...”
  Diaz não hesitou nem por um segundo, e começou a correr pelo corredor adentro, indo em direção ao seu quarto. Ele sentia uma sensação familiar, como se um “amigo” estivesse esperando por ele dentro daquele pequeno cômodo. Enquanto corria, ele pode ouvir mais estalos vindo de trás de si, como se um monte de galhos se quebrassem ao mesmo tempo. Diaz teve uma ideia do que se tratava, mas, ele não perdeu tempo parando para conferir o que era.
  _ DIAZZZZZZZ.... – A voz de Fenrir soou pelo corredor, dessa vez distorcida por uma entonação de desespero e dor, o que apensas confirmou o que Diaz havia pensado. – EU NÃO VOU DEIXAR VOCÊ VOLTAR!
  Após a voz se calar, algo estranho aconteceu. Diaz estava esperando que algo o acertasse com muita força impedindo que ele chegasse no seu objetivo, mas, em um piscar de olhos, ele se viu diante da porta do seu quarto que estava semiaberta.
  Dessa vez, ele olhou em volta, e, após ter certeza que não havia ninguém por perto, abriu a porta e entrou no seu quarto. A visão do que estava dentro daquele cômodo, fez com que a sua mente travasse por um segundo.
  Não havia basicamente nada dentro do seu quarto. As camas, cadeiras e armários haviam sumido, e a única coisa que existia ali dentro, era uma escuridão palpável. As paredes, o chão e o teto, parecia ser formados por uma sombra viva que se movia em pequenas e vagarosas ondas.
  _ DIAZZZZZ...
  Do lado de fora do quarto, a voz distorcida de Fenrir chamou por ele mais uma vez, mas, antes que ela se aproximasse mais, Diaz se moveu instintivamente e mergulhou para dentro daquelas sombras, sem nem saber o que aconteceria em seguida.
  “Você me ouviu! Que magnífico! Esplêndido! Normalmente as pessoas fogem de mim, é até irônico pensar que você é uma das poucas pessoas que correram para os braços da Morte!"
_ Quem é você? Aonde você está?
  “Pode me chamar de Morte! Os meus amigos também me chamam de Thanatos. Bem, acho que se eu tivesse amigos de verdade, eles me arrumariam um apelido bem legal!”
  _ Thanatos? Espera um pouco! Por que você parece ser tão familiar? Por que você não aparece pra mim?
  “Bem, seria um pouco difícil me materializar quando eu faço parte de você! E, esse também é o motivo pelo qual você me reconhece.”
  _ Por que algo me diz que você é uma criança?
  “Isso é simples e até engraçado! Como eu uso o seu corpo para permanecer vivo, minha personalidade acabou incorporando alguns aspectos da sua, então, resumindo, eu basicamente sou a mistura de um adulto com uma criança, mas, isso só acontece enquanto você estiver nesse estado deplorável!”
  _ Como assim? Deplorável?
  “Tenta se lembrar, Diaz! Eu sei que aquele espírito de quinta categoria roubou algumas de suas memórias, mas, tudo o que só a Morte vê, só a Morte é capaz de se lembrar! Se esforça um pouquinho garoto!”
  _ Espera... Caçador?
  “Ele tem um nome!”
  _ Sisifo? Espera, você é o Sisifo?
  “Não, não, não. O Sisifo é um ‘amigo’ por assim dizer. Digamos que eu fiz alguns favores para ele, e ele agora está pagando o que me deve! É mais dizer que eu sou você. Ou você sou eu! Sei lá! Tudo isso é muito estranho! É a primeira vez que eu morro!”
  _ Esse seu jeito de falar me irrita!
  “Da onde saiu essa sinceridade toda? E, de qualquer forma, quando eu perguntei isso? Brincadeira! Eu não me incomodo com isso, já que sou parte da sua personalidade. Ou você é parte da minha!”
  _ Podemos pular logo para o assunto que importa?
  “Você consegue ser bem chato para uma das encarnações da Morte! Mas, tudo bem!”
  De repente, uma cena curiosa surgiu na frente de Diaz. Dentro de um pequeno cômodo também formado por escuridão, ele viu o seu próprio corpo, envelheço alguns anos e coberta por uma névoa acinzentada. O que mais prendia a sua atenção, era o corpo vermelho igual sangue, que estava sendo erguido contra a parede por uma daquelas mãos cobertas de névoa.
  _ Quem são esses?
  “Vai dizer agora que você não se reconhece?”
  _ Espera, aquele ali sou eu?
  “Sim. O tempo foi generoso. Até que você é bonitinho. Mas, não me entenda mal!”
  _ Vê se cresce!
  “Você tá me repreendendo? Que estranho!”
  _ O que tá acontecendo aqui?!
  “Aquele bicho feito de sangue, roubou algumas memórias suas e estava prestes a te matar, forçando o caçador a tomar controle do seu corpo, o que também fez com que sua alma fragmentada fosse expulsa e enviada para um mundo de sonhos e lembranças, aonde tudo tenta consumir a sua energia positiva.”
  _ E o que eu posso fazer agora?
  “Você quem escolhe. Pode ficar preso aqui, ou voltar ao seu corpo e tentar sobreviver contra aquele bicho nojento.”
  _ Eu realmente posso voltar? Mas, eu não me lembro de nada do que, teoricamente, eu vivi no mundo real!
  “Isso é uma forma desse mundo falso te prender aqui. Mas, quando você voltar para o seu corpo todas as suas memórias voltarão. Talvez, uma ou outra se percam no caminho, mas, nada de muito importante.”
  _ Eu preferia manter todas as minhas memórias! Mas, eu posso só simplesmente voltar?
  “Basicamente sim. Eu vou ter que forçar a sua volta, e isso pode ter algumas consequências, mas, você vai sobreviver. Eu espero!”
  _ O quê?
  “Tô brincando! Só tem uma coisa que realmente vai acontecer, mas, eu prefiro que você descubra por si próprio! Eai, o que você vai escolher?”
  _ Por mais idiota que você pareça, eu realmente sinto vontade de ter meu corpo de volta, juntos das minhas memórias! Então, pode me mandar de volta!
  “Já estava na hora! Bem... não tenho muito o que falar. Mas, a gente vai se reencontrar um dia, e eu espero que você consiga me reconhecer de novo! Até mais, Diaz, e faça bom proveito da benção que a Morte te deu!”

Fragmentos Da MorteWhere stories live. Discover now