02

163 43 358
                                    

Olhei tantas vezes para a janelinha que quase não consegui perceber que o sol havia ficado fraco demais.

Era quase noite, provavelmente, e não tinham trazido pão ou água para nenhum de nós. Teriam três cadáveres no mercado de escravos se continuassem com essa restrição.

Pensei que ver toda aquela quantidade de secreção iria me fazer esquecer a fome, mas meu estômago me traiu descaradamente. No último ruído Grillo ouviu e me encarou com os olhos arregalados apontando para minha barriga.

- Não lembro a última vez que comi. - Dei de ombros tentando parecer despreocupada.

Ele sorriu, negou com a cabeça e bateu no próprio abdômen, fazendo o número 2 com os dedos.

- Não temos sorte, não é?

Grilo negou com a cabeça e esfregou os dedos sujos na minha frente. Não consegui entender exatamente a mensagem. Está fazendo menção a dinheiro?

- Suborno? É isso? Eu tentei com o Extremista, mas não deu muito certo.

Com um semblante confuso, Grillo esfregou os dedos de ambas as mãos na minha direção, mas continuei sem entender do que se tratava.

- Desculpa, eu não conheço esse sinal - imitei o gesto, mas ainda não fazia sentido algum.

Ele também pareceu desistir de tentar depois que apertou o nariz entre os dedos e negou. Me senti levemente ofendida com isso! Não tenho culpa se os sinais dele não são claros o bastante, oras.

Grillo pareceu não notar meu descontentamento quando apontou para meus pés. Eu olhei para os dele imediatamente. Estava calçado, apesar de os sapatos serem bem gastos.

- Tem alguma coisa errada com os seus?

Obtive o não como resposta, mas ele insistiu em apontar para os meus sapatos.

Duvido muito que caibam nos pés enormes dele e mesmo se coubesse, eram do tipo mais simples que o sapateiro poderia oferecer, sem contar o desgaste que era quase o mesmo dos de Grillo. Até que me veio em mente algo que fazia muito mais sentido para o uso daquilo, não para os pés dele, mas para as mãos.

Grillo estava despido da cintura para cima, manchado com pó de cincino até no cabelo. Talvez ele estivesse com frio e não quisesse pegar a camisa de volta, provavelmente faria deles algo próximo a uma luva, ou talvez quisesse só se limpar de todo aquele minério - para quem já está acostumado não irritava tanto, mas já ouvi visitantes na cidade dizendo que coçava na pele e ardia bastante nos olhos. De qualquer forma, lá estava eu cedendo meus sapatos para ele.

Pensei em jogar fora os fios de couro, mas Grillo os pegou também.

- Grillo - ele me encarou depois olhou em volta, como se estivesse procurando por perigo - se estiver com frio posso me sentar do seu lado.

Ele negou veementemente com a cabeça e bateu nos bíceps com o sapato, sorrindo com certo orgulho do que exibia.

- Ah, você é forte, entendi. - Ri enquanto falava e o barbudo me acompanhou, voltando sua atenção aos sapatos e cadarços, seja lá mais o que ele faria com aqueles trapos.

Respirei fundo quando outra onda de desânimo me cobriu a mente. O comboio que me transportaria para as cidades escravistas certamente chegaria ao amanhecer e duvido muito que os Extremistas responsáveis sejam tão amigáveis quanto Sinamon, o que significa que não iria adiantar muito tentar suborno.

Minha última alternativa era escapar durante a transferência, antes de sair da cidade de preferência.

Poderia ser menos perigoso.

Ri com escárnio da minha própria ilusão.

Minha fulga é quase tão possível quanto às grades da cela ,magicamente, resolverem se abrir para mim.

E talvez fosse um delírio causado pela fome, ou pela desidratação - os djinns e deuses sabem que minha saúde nunca foi das melhores - ,mas eu podia jurar, por um segundo, que com um simples click causado por Grillo, as barras se abriram.

E o ranger do ferro me convidou para a liberdade.

Entre DunasWhere stories live. Discover now