1: Tragédia Shakespeariana.

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Início do verão, 1997

O sangue nunca saía facilmente das roupas, o odor também impregnava o ambiente por dias, assim como os guinchos que sua mente não esquecia. Torcendo o nariz, Miyeon caminhou para longe da poça vermelha, os perdedores sempre acabavam em pedaços. Não sabia ao certo quando foi que se tornou insensível, em algum momento aprendeu que chorar não adiantaria, ninguém pararia a matança por ela.

  Inspirou quando alcançou ar fresco; tomando cuidado para não alterar a expressão de indiferença estampada no rosto. O verão trazia consigo o cheiro de frutas cítricas e a certeza de que os festivais macabros estariam em alta. Ali, numa cidadezinha esquecida em meio às montanhas; tão antiga quanto se pode lembrar, só havia um evento capaz de atrair a atenção de todos os moradores: a corrida de porcos. Miyeon se lembrava muito bem da alegria que a tomou na primeira vez que assistiu, do porquinho gorducho pelo qual torceu e do grito que rasgou sua garganta ao vê-lo ser esfaqueado por ficar em último lugar.

  — Vai ser o maior pernil dos últimos 3 anos, não é maravilhoso, Miyeon?

  A voz do pai soava carregada de ânimo, as rugas ao redor dos olhos saltavam quando ele sorria e cada fio de cabelo era mantido no lugar com pomada. Ao prefeito cabia ser impecável, polido, um exemplo do homem de bem, a sua filha cabia ser um reflexo do pai e isso não era algo para se orgulhar.

  — Sim, papai. Os cidadãos vão amar.

  Com um sorriso no rosto e o estômago mais embrulhado que um marinheiro de primeira viagem, Miyeon seguiu para o carro. Sentia as mãos pegajosas mesmo sem ter tocado uma única gota de sangue; quanto antes fosse para longe do matadouro melhor. É de se esperar que não comesse os porcos, mas o fazia e empurrava os pedaços goela a baixo — fazia o mesmo com tantas outras coisas — repetindo a si mesma que isso garantiria uma boa imagem. O prefeito não pode ter uma filha frágil.

  Foi naquela manhã, no início do verão, que Miyeon cruzou o caminho de Jungkook pela primeira vez, embora ainda não soubesse.  A moto cortou a picape e saiu cantando pneu, dentro do carro apesar dos gritos enraivecidos do pai contra o motoqueiro descuidado, tudo em que conseguiu reparar foi no dragão bordado na jaqueta de couro.

***

  Jungkook corria com o vento, não por ânsia de pôr os pés naquela cidade desprezível, mas pelo desejo de executar o que planejou uma vida inteira. Quando enfim chegou à área urbana percebeu os olhares tortos em sua direção, aquela gente não mudava, podiam alterar os cortes de cabelos e as fachadas dos prédios antigos, mas o ar de superioridade e julgamento seguia igual.

   A ruazinha do apartamento que alugou tinha algumas casas que pareciam inalteradas desde a era Joseon, em meio às construções centenárias prédios de fachada estreita se espremiam e uma loja de conveniências na esquina ostentava uma plaquinha indicando que havia internet ali. Estacionou a moto em frente ao prédio de quatro andares, a pintura já desgastada pela chuva fazia o imóvel parecer mais velho do que realmente era. Tirou a mochila do compartimento sob o banco da moto e seguiu para a entrada, Jimin trouxe a maioria dos pertences de Jungkook no fim de semana, eram coisas demais para carregar numa moto e de menos para valer fretar um caminhão.

  Um quadro de avisos na entrada acumulava notas e lembretes, mais a frente as caixas postais de cada apartamento eram dispostas uma sobre as outras; seja lá quem morava no 16B estava com muitas contas e cartas acumuladas. Apesar do calor do verão, alguns lugares do teto mostravam umidade, o mofo se espalhava até próximo da lâmpada amarela. A escada de madeira ao fundo rangeu quando Jungkook começou a subir, os estalos ruidosos lhe seguiram por todo o caminho. O apartamento que escolheu ficava no terceiro andar, longe de ser luxuoso mas serviria pelo tempo que pretendia passar ali; que não era muito, assim que resolvesse o que veio fazer colocaria os pés fora daquele fim de mundo e nunca mais olharia para trás.

Sublime 《 Jungkook 》Onde histórias criam vida. Descubra agora