HORA ZERO

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- É uma coincidência gigantesca que mais alguém que tenha vindo dessa cidadezinha more há mais de mil km daqui... Você não acha? Foi muita sorte você conseguir essa carona, Mel - indagou Ingrid, enquanto me ajudava a fechar uma de minhas caixas da mudança.

- Na verdade, é mais comum do que a gente imagina. Muitas famílias saíram de nossa cidade para buscar novas oportunidades, olha eu mesmo... passei esses últimos 3 anos fazendo cursinho em Coronel Sampaio, por justamente ter mais qualidade de vida e estudo por lá do que aqui...

Três anos de sacrifício imensurável, mas finalmente, meu momento havia chegado. Hoje, em pleno início de solstício de verão, organizava minhas poucas coisas para realizar o maior sonho da minha vida: estudar medicina com uma bolsa integral na mesma cidade que meus pais se conheceram anos atrás.

Medicina foi praticamente a primeira palavra que eu disse quando era pequena, e de lá para cá, minha mãe e eu movemos mundos e fundos para essa conquista.

- Você tá com medo? - indagou Ingrid, arregalando seus olhos amendoados enquanto dobrava uma toalha de banho e a colocava em uma caixa de papelão escrito "BANHO" em azul.

- Medo do que? Você não conhece o cara?

- Conhecer é muito forte. Ele é primo de segundo grau da minha namorada... Nossa cidade é pequena, mas nem tanto. Para te ajudar eu dei uma olhadinha no Instagram dele e... Meu Deus do céu.

- Meu Deus do céu o que? Ele é um tiozão tarado? Qual o problema?

- Totalmente o oposto. Ele é um gostoso. Totalmente low profile, então a única coisa que eu sei é que ele é bitolado em surf. Espero ter ajudado.

- E a Maitê? Diz o que sobre ele? - indaguei, intrigada.

- A Maitê o viu sei lá, duas vezes na vida. O parentesco é próximo, mas nem tanto assim... O que ela me contou da vida pessoal dele é que foi criado com a avó e apenas isso... - respondeu Ingrid, mencionando a namorada Maitê com um tom de voz mais amável que o comum.

- Um surfista... Ué, mas como que um surfista veio parar aqui? - indaguei, com a mente longe, pensando na única referência no surf que tinha: Gabriel Medina.

- Na verdade, ele está aqui apenas resolvendo algumas coisas sobre o inventário da avó dele. Inclusive, o Jeep que vai ajudar na sua mudança era dela, Dona Alice. Uma senhora maravilhosa, você iria adorá-la. Ela faleceu há um ano mais ou menos após uma pneumonia muito forte... Ele não morava mais com ela, então acredito que esteja de passagem. O resto você vai precisar descobrir sozinha - finalizou Ingrid, finalizando também o lacre da minha última caixa, que continha apenas alguns livros e itens de papelaria.

- Você promete que vai me visitar logo? E se eu não conseguir fazer um único amigo por lá? Meu modo de conseguir amigos depende das suas habilidades de quebrar o gelo e entrosar antes de chegar a minha vez de falar - enquanto fazia meu drama pessoal, soltava a fita crepe da minha mão e agarrava Ingrid pelos braços, em um ato um tanto quanto teatral.

- Vou te visitar antes mesmo do que você imagina. Quem não quer que sua prima melhor amiga more em uma das praias mais badaladas do país? Você é tão sortuda - ela correspondeu meu ato com um abraço carinhoso.

Ingrid era minha prima, mas muito além disso, éramos quase irmãs de alma. Tínhamos idades próximas, mas mesmo ela sendo alguns anos mais velha, eu sempre estive em sua sombra. Meu primeiro porre, meu primeiro festival, minhas principais saidinhas na surdina da noite, absolutamente tudo contou com o dedo da Ingrid. Quem eu seria longe dela? Como conseguiria tanta coragem de viver assim?

96 HORASDonde viven las historias. Descúbrelo ahora