HORA SEIS

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- Que tal desacelerarmos um pouco? - indaguei, enquanto nos aproximávamos de um pedágio com uma grande fila - estamos falando de coisas tão profundas, mas não sabemos o básico um do outro. Qual sua cor favorita?

- Provavelmente branco - ele respondeu, entrando no clima - talvez azul... ou preto também. Acho que essas três. E você?

- Acho que estou entre o lilás e o branco também - completei, balançando a cabeça - sabor favorito de sorvete?

- Sem dúvida, limão - ele respondeu, indo com o carro para frente lentamente, enquanto dançávamos a mesma valsa que outros carros dançavam até chegar a nossa vez - eu posso chutar o seu?

- Prossiga - falei, levantando as sobrancelhas.

- Baunilha - ele falou - eu diria que baunilha é seu sorvete favorito.

Dei um sorrisinho delicado, talvez por me sentir lisonjeada.

- Tenho até medo de perguntar o motivo dessa informação ser tão óbvia- falei.

- Seu cheiro. Desde que você entrou no carro eu só sei sentir o seu perfume ou creme hidratante, não sei dizer o que é exatamente. Mas é coerente deduzir que se você gosta desse cheiro para ter em você, o gosto também iria te agradar - ele respondeu calmamente - confesso que gostei também...

- Certo - interrompi, tentando retomar o controle desse assunto para não irmos além do que devíamos - qual a memória mais feliz da sua vida?

- Essa é fácil. A primeira vez que fui para praia com meu pai e meus avós. Nós passamos por uma barra muito grande, sabe? Mas na primeira oportunidade, meu pai levou todos nós para praia. Alugamos algumas pranchas e ficamos pegando jacaré por praticamente 10 dias. Depois daquele dia eu tinha certeza de que sempre encontraria refúgio no mar - ele contou, com aquele tom deslumbrado - mas para não ficar tão repetitivo e você não enjoar dessa falação, tenho uma outra também, só espero que você não me ache muito brega depois que a contar...

- Quando eu acabei o mestrado, eu estava totalmente infeliz - ele começou, após uma breve pausa - não via sentido em praticamente nada da vida que estava levando... eu sempre fui de questionar os motivos da vida, entende? Bom... eu já surfava naquela época e, modesta a parte, eu sou bom nisso, talvez pela minha dedicação e disciplina... Só que era muito difícil eu virar para meus avós e dizer "ei, eu sei que vocês fizeram de tudo por mim, mas eu não quero ser advogado igual meu pai foi, igual o senhor é", meu avô também era advogado.

- E o que você fez? Como você conseguiu? - indaguei, acompanhando a história como em um episódio final da novela das oito.

- Eu rezei - ele falou, abrindo um largo sorriso, e meu Deus, que sorriso - rezei para meus pais pedindo que me ajudassem. É estranho quando as pessoas que mais amamos no mundo não estão mais fisicamente com a gente. Eu ainda sinto a presença deles em mim, de uma forma muito irracional e impossível.

- Nossa... - não consegui expressar nem metade do turbilhão de sentimentos que se passavam por mim - continua...

- Por fim, eu me inscrevi em um campeonato, só que na hora de passar minhas informações, acabei passando o endereço errado, no caso, o endereço dos meus avós, e todo o meu kit para a competição foi entregue lá na casa deles - ele completou, em um tom triunfal - meus avós nem sonhavam o que eu estava fazendo da vida, mas quando viram que eu havia sido selecionado para prosseguir na competição, eles ficaram superanimados. Compraram passagem e tudo mais, foram me ver surfando em uma cidadezinha próxima de Itajaú. E daí em diante, é história...

- Eu estou...

- Impressionada? - ele falou por mim - é visível... Eu também fiquei muito impressionado na época. Só acho que esse grande "monstro" que criei na minha cabeça ficou muito maior por mim mesmo, do que pelas pessoas envolvidas. Você nunca maximizou um problema?

96 HORASWhere stories live. Discover now