HORA TRINTA E DOIS

1 0 0
                                    

Camilo estava estável, descansando em uma simples cama de hospital após ter tomado uma boa dose de analgésicos. Quando cheguei, mais ou menos quarenta e cinco minutos após ele ter dado entrada no pronto socorro, já o encontrei apagado naquela mesma cama. Algumas horas depois, o médico plantonista daquele dia passou e me explicou rapidamente o caso, mas não antes de questionar nosso relacionamento. O que era uma excelente pergunta.

Camilo tinha sim fraturado a perna - na realidade, seu tornozelo. Basicamente, a fratura ocorreu por uma compressão axial justamente após ele ter caído de pé. Era algo absurdamente comum, mas não seria algo positivo para a carreira de Camilo. Na verdade, era o que mais martelava em minha mente, pensar que um acidente poderia comprometer drasticamente a história de alguém, a ponto de me arrepiar só de imaginar algo que atrapalhasse minha vida profissional.

Passei minha vida inteira ansiando pelo momento em que poderia assumir as rédeas da minha vida, ir para o lugar que sempre idealizei ter um começo. É como se até dois dias atrás, eu tivesse ficado esperando para viver a minha vida e eu estava excitada por tantas possibilidades.

Em paralelo a tudo isso, a imagem da minha mãe enfiada naquele bloco industrial ficava em standby. Ela havia dado a vida por mim, feito planilhas e mais planilhas para pouparmos o suficiente para o cursinho preparatório e até retomado uma amizade do passado para eu ter um lugar seguro para morar até encontrar um local definitivo. Era trágico falar sobre isso, mas depois do meu pai, minha mãe simplesmente se guardou em uma caixinha e viveu a função de "mãe" e "trabalhadora", esquecendo completamente da Angela "mulher" que vivia em si. Trabalho era importante, mas não sei se eram meus hormônios ou a imprudência da idade, só sabia que nada me afastaria de viver o que eu precisava viver agora. E lá estava eu, em um quarto de hospital qualquer, olhando Camilo descansar tão lindamente. Seu rosto parecia cansado, sua perna estava engessada - o que me fez lembrar de quando um coleguinha de escola quebrou o braço e todos os alunos fizeram desenhos e assinaturas no gesso. Ele tinha cílios cheios e curtos e respirava tão profundamente que poderia até mesmo emitir um breve ronco ao fundo. Era perfeito. E íntimo. E totalmente assustador.

Eu não conhecia muito bem o território que estava pisando. Tirando a atração maluca, eu não sabia nada da vida prática de Camilo. Onde ele morava? Qual era de fato o trabalho fixo dele? Ele tinha uma namorada oculta? Ou eu era a namorada oculta, já que a outra era a principal?

- Ei... - ouvi sua voz dizer, enquanto ele abriu os olhos com preguiça - eu apaguei.

Ele se espreguiçou de forma demorada e saiu da posição que estava, levantando o dorso da cama.

- Isso é realmente uma merda - ele falou, olhando o pé engessado - adeus, Championship Tour esse ano...

- Como assim? - questionei - o que é isso?

- Uma competição bastante importante dentro do surf... Basicamente, com base nesse resultado, muitos surfistas são escalados para outras competições. Todas são organizadas pela World Surfing League. É a liga de surf que organiza todas as competições do circuito mundial de surf professional, tipo a Championship Tour, Qualifying Series, Longboard Championship etc. Eu não sei se comentei com você, mas eu já passei alguns períodos da minha vida na Austrália e apesar de não ter me saído muito bem no último campeonato, eu participaria das primeiras rodadas do Championship Tour.

- Camilo, eu sinto muito... - sussurrei, aproximando-me dele e sentando-me ao seu lado na cama, mantendo meus pés apoiados no chão.

- É a vida - ele falou, dando de ombros - nós não temos controle nenhum dela.

Ficamos alguns minutos em silêncio, tempo o suficiente para eu tomar coragem e agarrar sua mão que pairava próxima da minha. Eu sentia falta de tocá-lo.

- Eu gostei do nosso primeiro encontro - falei, rompendo o silêncio.

- Gostou de passarmos horas nos agarrando no meio de várias pessoas em um mirante velho e no fim eu quebrar meu tornozelo enquanto passávamos por uma relva? - ele indagou, dando um sorriso amarelo - eu te devo um primeiro encontro digno. Se é que tem como fazer algo digno com esse gesso aqui...

Eu não queria parecer obcecada por ele, mas acho que desde o ensino médio, nunca tinha recebido tanta atenção de um cara como dele. Camilo era incondicionalmente disponível para mim; escutava minhas histórias quando conversávamos e tinha respostas perspicazes e engraçadas. Ele estava presente. Mal ficava no celular (tudo bem que nossas conversas mais longas se passaram dentro do carro enquanto ele dirigia) e não parecia ser do tipo biscoiteiro que queria sempre chamar atenção. As vezes parecia que ele não sabia como era lindo.

- No que você está pensando? - perguntou, tocando o dedo indicador na minha bochecha - as vezes você se desloca para outro mundo. Eu pagaria pelos seus pensamentos.

- Honestamente? Estava pensando em você - falei, abrindo um sorriso enquanto assumia.

- É o efeito Milo Zatz - ele brincou, simulando um olhar orgulhoso de si - eu também pensei muito em você, até me apagarem...

- Pensou que tipo de coisa? - falei, aproximando-me dele na cama.

Milo se equilibrou em seus quadris e puxou-me para o seu lado, fazendo-me caber na pequena cama da enfermaria, esticou um dos seus longos braços e envolveu meus ombros em um abraço lateral.

- Eu queria te beijar desde que você entrou no carro - ele sussurrou, encostando os lábios próximo à minha orelha - você estava tão linda, sem nenhum fio de cabelo fora do lugar...

- Totalmente diferente de agora, né? - exclamei, dando um sorriso sem graça - eu estou muito longe de estar apaixonante.

- Discordo - ele falou - mas, vamos ao que interessa. Você não quer usar suas habilidades de locomoção e descolar a minha alta não, doutora?

- É para já - falei, dando um pulo da cama e retomando meu fôlego. Camilo me fazia pensar em sexo até mesmo em uma cama de hospital.

- Eu serei seu paciente número zero - ele brincou - preciso urgentemente de um banho, inclusive.

- Eu serei médica e não cuidadora - falei, cortando o seu barato - mas posso pensar no seu caso quanto a esse banho...

E novamente, aquilo aconteceu. Nos entreolhamos por segundos, que pareciam horas que proporcionavam emoções latentes e agudas, como as diferentes ressonâncias de ondas em um maremoto. E eu jamais me cansaria daquilo. 

96 HORASOnde histórias criam vida. Descubra agora