Capítulo 39: O homem em chamas

2.7K 133 101
                                    

Para AndressaDrey que é uma pessoa maravilhosa :)

O mundo era um lugar escuro, onde a dor ainda prevalecia, mesmo em minha inconsciência. Me sentia enregelada, cansada e dolorida. Todas as células do meu corpo gritavam que havia algo que eu precisava fazer. Algo que...Não. Alguém.
Ele precisava de mim.
Bonnie.
Ele dependia de minha vida, do meu ar, de meus cuidados. Porém, a necessidade de me afundar nas trevas, para que a dor não viesse, parecia maior.
Bonnie.
Estava quase deixando a inconsciência me levar, quando senti, o sacolejar.
Eu estava tremendo? O que era aquilo?
A vontade de dormir era quase dolorosa e predominante. Me irritava o fato, de não poder descansar.
Bonnie.
Eu queria dormir, mas o sacolejar não deixava. Cansei de lutar e comecei a ceder ao sono, para longe da dor.
E algo me chutou.
Não foi forte, e não veio de qualquer outra direção que não fosse de dentro de mim. Eu senti, aquilo dentro de mim.
O bebê.
Era por ele, que eu tentava me agarrar a consciência. Ele precisava de mim.
Meu filho precisava nascer.
BONNIE!

- Bonnie! Acorda!- ouvi alguém dizer, com a voz extremamente distante.
Havia um som abafado de trovões e chuva ao longe.
Me remexi, um pouco molenga.
- Bonnie, acorda, por favor!- ele ainda chamava.
O som da chuva tornou- se mais intenso, com trovões tão altos que pareciam estar ao meu redor.
Alguém me sacudia levemente, delineando os dedos de forma cuidadosa por minha face.
- Bon, amor?- chamou, com a voz incrivelmente frágil.
Soltei um som esquisito, como um muxoxo ou um gemido.
- Kai?- perguntei, abrindo os olhos devagar. Minha voz estava rouca.
O quarto estava muito escuro, ora clareando por causa dos raios que ressoavam no céu noturno. Eu ainda estava caída com metade do corpo dentro do closet, no chão frio.
E pude vê- lo.
Kai estava completamente encharcado, com os cabelos escuros pingando e sua camisa colando- se ao corpo.
Seus olhos, pareciam mais cinzentos em meio a falta de luz, quase como chumbo líquido. E a escuridão neles, se intensificava por causa de sua preocupação evidente.
- Kai- comecei rapidamente, me dando conta- Minha bolsa se rompeu...
Eu parecia desesperada, com minhas mãos se agarrando ansiosamente na manga de sua camisa molhada.
- Eu sei, Bonnie- murmurou me avaliando para ver se eu não havia sofrido nenhum ferimento grave- Por que não me ligou?
- Eu tentei...meu celular descarregou e eu queria contatar você pelo pager, mas acho que desmaiei- falei, quase chorando de alívio por ele estar comigo- Eu estou com tanto medo.
Ele me levantou com cuidado, fazendo com que eu me sentasse. Suas mãos apoivam minhas costas.
- Eu estou com você, não se preocupe- sussurrou, acariciando meu rosto, tirando os fios grudados pela leve camada de suor em meu corpo.
E naquele momento, tudo pareceu tão menos assustador. Kai era minha força, e com ele não precisava temer nada. Ele me protegeria.
- Vem, temos que ir para o hospital- disse, fazendo a menção de me tirar do chão.
Me encolhi, ao sentir uma contração intensa.
- Ah! Kai, isso dói!- chorei, envolvendo minha barriga, com uma mão e agarrando mais o tecido da camisa dele.
Meu marido, me olhava desesperado, como se minha dor o estivesse fazendo sofrer tanto quanto eu.
- Inspira e expira, Bon- sussurrou, acariciando meus cabelos- Isso vai ajudar.
Ele encostou sua testa contra a minha, fazendo o que me mandou.
Tentei imitá- lo, me concentrando para que a dor não parecesse tão intensa.
Minha respiração ainda era ruidosa, mas aquilo ajudou. A contração logo se foi, como veio.
- Qual é o intervalo das contrações?
Ergui os olhos, vendo- o me olhar de forma séria.
Sabia, o quanto o fato de eu estar sofrendo o afligia, podia ver em seu olhar, mas Kai tentava dominar seu medo e ser prático.
- A-Acho que... cerca dez minutos ou menos... - disse, com incerteza.
Ele assentiu, não falando mais nada. Seus braços contornaram, sob meus joelhos e seguraram minhas costas com firmeza, me erguendo com facilidade.
Transpassei um braço em seu pescoço, enquanto repousava a mão em minha barriga redonda.
Kai caminhou rapidamente, até a porta, parando apenas, para pegar uma bolsa de branca, com cavalos coloridos de rosa e azul.
Há uns dois meses, resolvi preparar aquelas bolsa de bebê, para o caso de eu precisar ir às pressas para a maternidade. Tinha coisas que talvez, eu e nosso bebê fossemos precisar. Camisolas limpas, toalhas, roupinhas de bebê, fraldas, mamadeiras, etc. Kai também, colocou algumas coisas que achou necessárias.
O vi colocá- la por cima do ombro, sem me soltar.
Abriu a porta- que estava entreaberta- com o pé e saiu caminhando apressadamente, comigo em seus braços. Mas teve o cuidado de não ir rápido demais, para não me causar mais desconforto.
Os corredores estavam vazios, não havia ninguém que pudéssemos ver.
Todos estão naquela festa idiota, resmunguei para mim, mesma.
A fraternidade que comemorava, era uma das maiores do campus, então seria mais que justo, ver todos os jovens de Withmore, indo festejar por lá. Inclusive, minhas amigas que moravam um andar abaixo de mim, mas não estavam presentes.
As contrações, ainda não haviam chegado, então tentei me manter calma para não assustar meu bebê.
Experimentei, olhar para Kai e me arrependi.
Sua expressão era de raiva e resignação contida.
- Sei o que está pensando- murmurei, e minha voz estava mais frágil do que eu queria. Me sentia exausta.
Kai soltou o ar pesadamente, parecendo aborrecido.
Ele não olhava para mim, só para o corredor adiante.
- Me preparei pra isso, por meses- disse, com uma voz dura- E não estava lá, quando mais precisou de mim.
- Não diga isso- murmurei, sentindo toda a sua agonia- Nós não sabíamos que ele viria agora. Nas consultas, tudo correu bem. Não havia indícios.
- Podia ter acontecido algo pior com você e nosso filho- disse, ainda aborrecido- Eu deveria estar por perto.
- Kai- disse, tocando seu rosto- Não fique se martirizando por isso, ok? O importante, é que estamos juntos, agora.
Ele não disse nada, apenas me lançou um olhar sem expressão e sem vida. E eu sabia que ele tentava esconder todo o seu medo.
Eu morri duas vezes perto dele e nem consigo imaginar o quão doloroso e excruciante foi para Kai, me perder. Tentei, me colocar em seu lugar e quase senti a dor de perdê-lo realmente.
Eu não conseguia viver sem ele. Seria insuportável.
Kai desceu três lances de escadas, comigo em seus braços e caminhou por toda a extensão da instituição. Não sabia como ele conseguia me carregar e não parecer cansado, o fazia como se eu nem pesasse nada.
As dores me subjugaram durante todo o caminho. Cada contração vinha mais forte e com um intervalo menor.
Tentei me manter firme, para não desmaiar, outra vez.
Kai percebia, meu sofrimento, o que só o fazia apertar mais o passo pelo estacionamento da escola, com o queixo endurecido e com uma expressão de calma forçada.
A chuva fria despencava sobre nós dois, deixando-nos completamente encharcardos.
Ele parou em frente ao Gran Torino preto e antigo.
Kai tinha um amor quase obsessivo por aquele carro, vivia se preocupando em comprar peças novas e o consertando. Eu tinha um certo ciúme disso, pois não queria me afastar dele, mas entendia que garotos precisavam de seus brinquedos.
Dar uma de mecânico era a terapia de Kai, principalmente, quando tinha um dia estressante e cansativo.
Ele abriu a porta do banco traseiro e me depositou com cuidado dentro dele.
Me ajeitei, enquanto Kai, colocava o cinto de segurança em volta de mim, se certificando de que não estivesse apertado demais.
Senti sua mão fria por causa da água tocar em meu rosto, afastando os frios grudados em meu rosto. Seus olhos tinham perdido um pouco daquele tom de chumbo, a luz dos raios faziam com ficassem de uma cor de prata brilhante.
- Vai ficar tudo bem- sussurrou, acariciando meu rosto- Eu prometo.
- Acredito em você- murmurei, dando um sorriso de canto.
Kai se inclinou sobre mim, dando um beijo carinhoso em minha testa.
Suspirei.
Ele se afastou, pegando o que se parecia uma jaqueta preta de couro, sobre o banco do carona. Me cobriu com ela, deixando aquele aroma de almíscar me rodeando e com o adicional de poder me aquecer, também.
E se afastou, fechando a porta do carro.
O vi através do vidro -que mais parecia uma cachoeira, tamanha era a força da chuva- dando a volta e se sentando no banco do motorista.
Kai sacudiu um pouco da água dos cabelos encharcados, logo em seguida, pôs a chave na ignição e mal tinha fechado a porta do carro, e já estava correndo, com as rodas do automóvel deslizando pelo asfalto, em um som alto e agudo.
O motor rugia, conforme Kai acelerava mais.
Estávamos saindo dos muros, do estacionamento do campus, quando o vi procurando algo nos bolsos da calça.
Até que tirou o celular e ainda olhando para a estrada, digitou os números na tela.
Encostou na orelha, se remexendo ansiosamente no banco do motorista.
- Alô? Ah, oi Rick, preciso falar com a Jô- explicou, parecendo nervoso, houve uma pausa e Kai ficou irritado- Não ligo se o som do telefone acordou a Charlotte, preciso falar com a minha irmã. É importente- outra pausa- Então, acorda ela!
Kai esperou, tombarilando os dedos pelo volante nervosamente.
- Jô?- e suspirou, audivelmente com impaciência. Jô deveria estar dando uma bronca terrível no irmão. Ela passava muitos dias fazendo plantões seguidos e quando podia dormir era quase sagrado, nem mesmo Rick ousava acordá- la- Preciso que se vista e vá para o hospital, agora. Quê? Não me importo que tenha passado por um plantão longo, deveria trabalhar menos. Preciso de você agora, Jô. A bolsa de Bonnie se rompeu.
Kai ficou em silêncio, provavelmente, ouvindo os gritinhos histéricos de Jô, ou ela andando apressada pela casa e procurando seu jaleco.
- Sim, ela está com contrações mais frequentes e em um período de tempo curto, o bebê já está a caminho- explicou, olhando para a estrada molhada e escura das ruas do campus- Só confio em você para fazer isso. Preciso que arrume a melhor equipe de cirurgiões desse campus. Bonnie tem que ser muito bem cuidada.
Exagerado, pensei, revirando os olhos.
Kai era extremamente super protetor, chegava a ser um pouco sufocante. Porém, ele havia me visto morrer por duas vezes, então, não era de se estranhar que agisse, assim.
Também, agiria da mesmo forma se o tivesse perdido tantas vezes. Acho que, seria pior que ele.
Kai desligou o celular, voltando sua atenção para a estrada.
- Não deveria tê- la acordado, Kai- murmurei, com a voz um pouco cansada após tantas contrações- Outro médico poderia cuidar de mim.
Ele me encarou pelo espelho retrovisor acima de sua cabeça.
- Jô é a melhor no que faz- murmurou, com a voz insondável- Não quero nenhum outro médico. Ela vai cuidar bem de você.
Consegui detectar a frase implícita em suas palavras.
Jô não me deixaria morrer, era isso o que queria dizer. Mas continuei, quieta.
- Eu amo você- disse, vendo seus olhos assumirem o azul terno que eu amava.
Kai deu um pequeno sorriso para mim. Era preocupado e um pouco tenso, mas ainda era o meu sorriso.
- Eu, também, amo você, minha vida- disse carinhosamente.
Eu sorri para ele, vendo-o voltar sua atenção para a estrada.
Claro, que eu ainda ficava apavorada com a direção suicida de Kai. Ele adorava correr com aquele carro, mas ainda bem, que nunca levou uma multa ou uma infração na carteira de motorista. Nem sabia como ele conseguia esse feito. E o fato de estar preocupado comigo só o fazia correr acima dos cento e cinqüenta quilômetros por hora. Porém, naquele momento não me importei com aquilo, pois estava mais preocupada com meu filho, para notar alguma coisa.
Meu sorriso, foi morrendo em meu rosto. Uma contração estava chegando.
E seria das fortes.
- Ah!- arfei, me inclinando sobre minha barriga enorme, com uma das mãos pousadas nela e a outra, agarrando o assento de couro.
Eu sentia, como se um punhal cego e enorme, estivesse me rasgando, tamanha foi a dor. Todo meu corpo tremia em razão de estar se retesando para conter a dor insuportável em meu ventre.
Um suor frio, começou a descer por minha pele, fazendo meu corpo ficar muito mais quente. O gosto do sangue era bem evidente, pois eu mordia meu lábio inferior para conter um grito.
Ergui os olhos, vendo uma umidade persistente me cegando, e vi o modo como Kai lançava olhares frenéticos na minha direção e na da estrada. Ele estava terrivelmente preocupado, sua dor era tão palpável quanto a minha.
Ele não suportava me ver sofrer e ainda mais por algo que ele não podia controlar.
Os nós de seus dedos ficavam brancos, conforme ele apertava as mãos no volante do carro. E seus lábios provocantes, estavam em uma linha rígida, demonstrando toda sua preocupação comigo.
- Inspira e expira, Bonnie- murmurou, me encarando pelo retrovisor, com um olhar suplicante.
Tentei fazer o que ele mandou, mas ainda assim, a dor não passava. As contrações estavam com uma potência inacreditável.
Demorou mais que no início para a dor desaparecer de novo, mas sabia que ela voltaria daqui alguns segundos ou minutos. Seria só uma questão de esperar.
Kai pareceu muito mais motivado, dirigindo perigosamente rápido em direção ao hospital de Withmore.
Não era um grande percurso.
Cerca de meia hora a pé e vinte minutos de carro. Chegaríamos rapidamente, com Kai dirigindo como um verdadeiro psicopata.
Encarei a estrada sob a chuva forte e pude ver alguns pequenos cafés e restaurantes em cada lado da rua, mas estavam fechados à essa hora.
Tudo era tão estranhamente vazio e assustador sem a presença de pessoas. Talvez, fosse só a noite chuvosa que carregava aquela sensação de angústia e medo.
Como se algo fosse acontecer...
Me forcei a parar de pensar em coisas ruins, pois com a sorte que tínhamos, algo ruim, realmente, poderia acontecer.
A estrada iluminada só pelas luzes dos postes, tornou- se estranhamente colorida e vívida.
Azul e vermelho.
Pude ver à alguns metros de distância, as sirenes de dois carros de polícia, que fechavam a passagem, fazendo uma fila enorme de carros se formar.
Ouvi os som de buzinas impacientes.
- O que está acontecendo?- perguntei para Kai, que observava a estrada com os olhos semicerrados- tentando ver através da chuva que caía- enquanto estacionava atrás de um Volvo prata.
Minha voz soava cansada e assustada, quase com um tom infantil.
Kai virou a cabeça por sobre o ombro, me fitando.
- Eu não faço a mínima idéia- suspirou, me vasculhando com os olhos procurando algo aparentemente errado. E deve ter achado, pois baixou os olhos, voltando a olhar para a estrada.
- Você está cansada- concluiu, com um pesar forte em sua voz.
Me remexi um pouco no banco, inclinando para frente com cuidado, e pousei a mão sobre seu ombro.
Kai suspirou.
- Eu vou ficar muito bem- falei forçando um sorriso para ele- Claro, que bem depois do seu filho parar de me chutar como se eu fosse uma boa de futebol.
Aquilo o fez rir, o que me deixou muito mais aliviada.
- Não se preocupe tanto, bebê - sussurrei acariciado os cabelos molhados de sua nuca- Você fica muito diferente do Kai que eu conheço. Parece um velho chato.
Ele deu de ombros.
- Não sou chato. Só protejo o que é meu.
Ergui uma sobrancelha.
- Então, eu sou sua propriedade?
- Claro que, sim- murmurou, com um ar quase brincalhão.
- Vou deixar que continue com essa ilusão- revirei os olhos, apesar de estar cansada e desconfortável.
Ele me olhou por sobre o ombro.
- Por isso, a amo tanto- brincou.
E não pude deixar de sorrir um pouco.
No mesmo instante, ouvi um som abafado como o de um objeto batendo contra o vidro.
E vi um policial, completamente encharcado, encarando- nos seriamente do lado de fora do carro.
Kai baixou o vidro do seu lado.
- Boa noite- disse o homem, apontando uma lanterna para nossos rostos.
- Boa noite- retribuiu Kai, sério- O que está acontecendo ali na frente?
O policial carrancudo, fez uma careta mais antagônica.
- Foi essa maldita festa de fraternidade- resmungou- Esses adolescentes bêbados bateram os carros. Dois foram internados no hospital com ferimentos graves e outros três se salvaram por milagre.
Enquanto olhava para o homem, pude sentir... outra contração chegando.
- Kai!- chamei, me inclinando para frente e agarrando o encosto do banco em que meu marido estava sentado- Dói...!
Senti algumas lágrimas escaparem.
- O que ela tem?- ouvi o homem, questionar.
- Ela está em trabalho de parto- explicou Kai, parecendo ansioso e nervoso, como se estivesse louco para furar aquele bloqueio e dirigir o mais rápido possível para o hospital- Não há um modo de passarmos? Eu preciso levar minha esposa ao hospital! Por favor, ela precisa de cuidados...
- Ei, ei! Calma garoto- murmurou o policial- Não há um modo de passar. Precisam contornar o campus.
Ouvi a respiração alta de Kai.
- Não dá tempo de contornarmos o campus! É um caminho muito longo. Ela não vai aguentar- sabia que ele estava muito próximo de perder a paciência e isso não era bom.
Gemi baixinho, tentando me segurar. Eu me balançava para frente e para trás, em uma medida desesperada para me livrar da dor.
- Sinto muito, filho- disse o policial, parecendo se condoer de nosso sofrimento- Não posso deixar que passem. As ordens foram claras.
Senti o coração de Kai fervendo em meu peito.
E nem precisava olhar para ele, para saber que devia estar encarando o policial de um modo quase assassino.
- Se acontecer qualquer coisa com a minha mulher- disse Kai, de forma lenta e fria- Juro que encontro você e arranco sua cabeça.
E deu marcha- ré no carro, saindo à toda pela estrada. E claro, que ele tinha que dar um maldito cavalo-de-pau, que quase me fez vomitar.
Kai me encarou pelo retrovisor, pedindo uma espécia de desculpas silenciosa.
Aceitei.
O que mais me causou estranheza foi o fato de o policial não ter nos seguido e prendido Kai por desacato à lei e direção perigosa. Mas acho que de certa forma, ele estava ocupado demais, arrumando a merda que aqueles adolescentes idiotas haviam causado.
E Kai continuava dirigindo rapidamente, tentando compensar o tempo que perdemos.
Acontece, que aquele era o caminho mais curto. O trecho que contornava o campus, levava cerca de quarenta minutos de carro e uma hora a pé.
Eu nem sabia se aguentaria mais dez minutos de contrações cada vez mais fortes.
Elas não estavam indo embora, como antes. Estavam se tornando mais presentes e incrivelmente dolorosas.
A cada nova pontada de dor, eu me encolhia como uma bolinha no banco, chorando e gritando de dor.
Kai não tentava me acalmar, pois sabia que aquilo não adiantaria mais e uma que eu estava quase o xingando por não ir mais rápido.
A dor estava me transformando em uma criatura irracional.
O Gran Torino, deslizava pelo asfalto molhado, grunhindo aos duzentos quilômetros por hora.
Não conseguia olhar para onde estávamos indo, pois estava muito concentrada em não desmaiar, mas sabia que estávamos em uma parte onde árvores se estendiam por quilômetros dos dois lados das calçadas, competindo com os postes de luz. E também, estava ciente que não havia mais nada além daquilo.
As pessoas não passavam por essa parte do campus nesse horário.
Me senti pequena e solitária naquela vastidão e a única coisa que me confortava era ter Kai, comigo.
- Aguenta só mais um pouco, Bon- disse, ainda mirando a estrada com uma expressão mais que resignada.
Quase tive vontade de responder: "Ah, claro, posso segurar esse bebê aqui dentro por toda a eternidade", mas não o disse pois não era culpa de Kai que eu estivesse com aquela dor.
A única resposta decente que pude dar, foi:
- Hummmmmmmm...
Já estávamos a cerca de quinze minutos no caminho para o hospital.
E acredite, quando se estava sendo torturada por dores, aqueles simples minutos se tornavam uma eternidade. Mas não era o tempo que me preocupava e sim o barulho estranho que o carro de Kai, fazia.
Era um som alto, como um guincho e um som metálico ao fundo.
Kai também, percebeu.
- Ah, não...
A velocidade começou a cair drasticamente.
- Não, não, não! Não faça isso comigo, garoto!- implorou, como se estivesse falando com um cão super inteligente- Não, não... agora, não!
E o carro simplesmente parou. Morreu.
- Kai?- chamei assustada, ainda encolhida no banco de trás do carro.
Ele me encarou um pouco aflito.
- Eu vou dar um jeito nisso, amor.
E saiu de dentro do carro.
Ergui um pouco minha cabeça, ainda morrendo de dor, mas tentando me conter.
Vi meu marido, contornando o carro no meio do temporal e alçando o capô preto. Ficou assim durante mais alguns segundos e depois o abaixou bruscamente.
Eu não conseguia ouvir o que ele dizia, mas podia ver.
Kai esmurrava o capô da lata velha e chutava o párachoque com um fúria doentia, como se estivesse espancando uma pessoa de verdade.
Esperei até que ele parasse com seu acesso de fúria.
Ele caminhou decidido para o carro, entrando e pegando seu celular em cima do banco do passageiro. Discou os números rapidamente, xingando quando errava algum.
Colocou- o na orelha e esperou alguns segundos.
- Oi, é do hospital de Withmore? Eu preciso de uma ambulância perto do "Arvoredo". Minha esposa está em trabalho de parto- ficou em silêncio ouvindo o que o atendenta falava do outro lado. Pude vê-lo ficar um pouco mais rubro- Como assim, não podem mandar uma ambulância?! Estamos na metade do caminho, não irá demorar muito. O quê?! Foda- se a merda desses adolescentes bêbados e alcoolizados! A vida da minha esposa e meu filho são mais importantes e não a porra de um coma alcoólico de um cretino que não sabe beber! Eu exijo que mande uma ambulância! O quê?! Ei! Espera...
E ele afastou o celular da orelha, bufando de raiva.
- Merda! Merda!- exclamou esmurrando o volante do carro- Não acredito nisso!
Me virei, no banco, com aquela dor me golpeando. Minhas costas estavam em chamas.
- O que está acontecendo?- perguntei, mais assustada do que queria transparecer.
A cabeça de Kai pendia entre os ombros em sinal e cansaço e derrota. Ouvi- o suspirar.
- Disseram que não vão mandar uma ambulância, por causa daquela festa inútil. Parece que os idiotas de lá, estão aprontando, se machucando em acidentes e indo parar no hospital em coma alcoólico. Resultado: todas as ambulância estão sendo requisitadas por todo o campus.
Tremi um pouco.
- Quer dizer, que ninguém vem nos ajudar?
O vi esfregar os cabelos, talvez tentando achar uma resposta para aquilo. Kai odiava não poder me ajudar e salvar o tempo todo. Isso acabava com ele.
- Nós vamos dar um jeito, amor- falou, esticando a mão pela lateral de seu banco e encontrando a minha. Ele a apertou com firmeza, passando todo aquele conforto para mim.
- Sim, nós vamos- tentei sorrir para ele.
E Kai, pareceu se lembrar de algo.
O vi pegar o celular e discar mais alguns números. Encostou o aparelho na orelha e esperou.
- Alô, Damon! Cara, preciso da sua ajuda!
- Põe no viva-voz - pedi, com uma voz esganiçada.
Ele o fez.
- O que você quer, monstrinho? Eu estou com a minha garota. E há menos, que você me diga que está com duas louras gostosas, eu não saio desse quarto. Ai! Calma, Elena, eu estava brincando!- Damon, o idiota de sempre.
Kai pareceu não dar importancia para aquilo.
- O meu filho vai nascer- disse, com uma pontinha de desespero, mas ainda assim, orgulhoso como um pavão- Preciso de uma carona, meu carro enguiçou na metade do caminho. Preciso levar Bonnie para o hospital, logo.
- A Bonnie está ouvindo?- questionou do outro lado da linha.
- Sim- disse Kai.
- Parabéns, BonBon, vou comprar um pacote de fraldas no caminho!- gritou do outro lado.
- Vai se ferrar, Damon!- grunhi, me virando no banco, incapaz de conter aquele monstro dentro de mim, que queria mandar todos irem à merda.
- Imagino que isso falando comigo, sejam as contrações- murmurou, sendo irônico.
- Babaca de merd...- comecei, mas fui interrompida por Kai, que começou a a falar com o retartado do meu amigo.
- Onde você está?- questionou, ele.
- Ainda na festa da fraternidade, mais exatamente no quarto de um desconhecido, com a minha namorada linda- respondeu, Damon.
Kai suspirou.
- Ok, me poupe dos detalhes, só preciso que venha até o "Arvoredo". A Elena, sabe onde fica. Venha o mais rápido que puder, precisamos de você aqui.
E desligou, logo em seguida.
- Agora, o que nos resta é esperar- suspirou.
E se embrenhou pelos bancos, para poder ficar perto de mim. Kai sentou- se ao meu lado- no banco de trás- e colocou minha cabeça sobre suas pernas com cuidado. O senti acariciar meus cabelos úmidos pela chuva e o suor.
E de certa forma, fez com que a dor parecesse menos importante. Kai me deixava totalmente segura, mesmo que o mundo estivesse desmoronando à minha volta.
- Sinto muito. Isso tudo é minha culpa- sussurrou, ainda tocando em meus cabelos.
Continuei encolhida como uma bolinha no banco do carro, com as contrações indo e vindo.
- Por que diz isso? Por causa do carro?- questionei, erguendo um pouco a cabeça para observá-lo.
Ele suspirou, com seus olhos azuis na chuva que desmoronava com
toda a força do lado de fora.
- Por tudo, Bonnie- disse com pesar- Por não ter consertado essa lata velha direito, por não ter planejado esse dia, o nascimento do nosso filho com mais cautela, por...
- Ah, meu Deus!- revirei os olhos- Agora vai me dizer que também é culpado por minhas contrações, porque você me engravidou?
O vi dar um sorrisinho triste.
- Colocando dessa forma... É. Sou culpado disso, também.
Coloquei minhas mãos em volta de minha barriga, de forma protetora. Havia se tornado uma atitude muito natural, como se meu filho estivesse ali por toda minha vida.
Encarei seus olhos azuis- cinzentos.
- Escuta aqui, Malachai- murmurei de forma firme- Você não fez essa criança sozinho. Também, é minha responsabilidade. E pelo amor de Deus! Dores de parto são mais comuns o do que você imagina, então não fique se martirizando por isso. E se você, meu caro, não tiver a pretensão de me contar alguma coisa engraçada para que eu me esqueça dessa maldita dor, sugiro que fique calado.
Kai ficou me fitando, sem saber o que dizer. Então, preferiu o silêncio.

Convergência Sombria | Bonkai | EM REVISÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora