CAPÍTULO 03 - O Padrasto

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O Villages possuía uma vista privilegiada para o mar, a varanda em decoração de tábuas corridas e mármore branco legítimo com grandes espreguiçadeiras, May estava nelas tomando o sol que nascia vagarosamente no horizonte, ao lado, na pequena mesa de granito, o frasco de Cianeto com sua coloração azul e a garrafa de Absinto, que foi trazida pelo garçom logo pela manhã. Cuidadosamente abriu o frasco com o pó azul-esverdeado e despejou-o dentro da garrafa. Lembrou-se de quando era uma criança e de tudo que vivera até ali, o dia seria longo e precisava antes de mais nada acertar contas do passado, antes mesmo de ir ao encontro de sua mãe, Lena, que se encontrava internada há vários meses no Hospital das Pedras, localizado ao centro da pequena cidade e do lado oposto ao Villages.

O ambiente ainda lhe era familiar, pouca coisa havia mudado na pequena vila, o tempo parecia congelado, como pequenas gotas orvalhadas em manhãs frias.

As lembranças retalhavam seu corpo como se tudo ocorrera naquele momento.

— Olá! — Disse May ao velho senhor que apertava os olhos num esforço para puxar de sua memória quem era aquela mulher à sua porta. — Não se lembra de mim — sorriu, forçando uma amistosidade inexistente que não foi percebida — Débora, sua Débora — enfatizou.

Os olhos do homem se arregalaram, enquanto May adentrava a humilde casa.

— O que você quer? —Interroga o homem que aparentava bem mais idade do que realmente tinha.

—Temos um acerto de contas Pai — responde analisando o interior da casa a qual parecia um muquifo miserável. May reconhecia cada canto e a cada minuto mais e mais lembranças invadiam seus pensamentos. — Algumas coisas precisam de um ponto final Papai — conclui de forma irônica.

— Eu sinto muito Débora, faz muito tempo — diz o homem enquanto a voz aparenta estar embargada, transparecendo que antigos vícios não foram deixados mesmo após tantos anos — eu sinto muito.

— Você não sente! Não senti porque nunca conseguiu parar de me violentar, dia após dia — fala May enquanto observa o mar azul pela janela da pequena sala —eu era apenas uma criança...

O velho ameaça um abraço que logo se desfaz, parece confuso, olhos úmidos.

— Mas estou aqui para enterrarmos o passado! — Exclama May surpreendendo o senhor que se senta em uma banqueta que se encontrava-se próximo ao canto do cômodo, que mesmo durante a manhã ensolarada apresentava-se semiescuro — trouxe para ti uma bebida, um pedido de reconciliação, o que acha de enterrarmos o passado? — Completa de forma a passar segurança.

— Podemos reconstruir tudo, Debi — sussurra o homem sem conseguir manter os olhos fixos em May — eu sinto muito por tudo, não sou o mesmo homem, perder a sua mãe e a você foram meu pior castigo — engasgando-se com essa última frase, levantando-se em direção ao pequeno cômodo.

— Você não tinha culpa Pai, como dizia mesmo? — Diz de forma a encobrir seu nojo e ódio do homem magro que não era nem a sombra do demônio o qual a violentava na cama de sua mãe e tecia ameaças para o silêncio de sua filha.

— Vamos beber e fecharmos o passado, apagar o que de ruim se passou. — Concluiu May, pegando um dos copos que o velho à oferecia e servindo para ambos do líquido que estava com aparência azulada pela mistura de cianeto com absinto.

Tudo seguia da forma que fora arquitetada, o velho senhor parecia realmente acreditar que a reconciliação de algo tão perverso pudesse ser possível. Mas para May tudo estava muito vivo, conseguia até sentir a ardência do membro do homem à sua frente enquanto implorava para que não fosse estuprada, invadida da forma mais vil — tomemos então — forçando um sorriso que novamente se desfaz na primeira tentativa de se construir.

Entregando o copo de bebida ao pai e de posse do seu, finge bebericar num brinde letal.

— À uma nova vida!

— À uma nova vida — compartilha a frase o homem, que em um único gole vira o copo com a mistura de absinto e cianeto, franzindo o cenho numa menção ao amargor da bebida.

— Adeus Papai — diz May enquanto o homem deixa cair o copo que se desfaz em milhares de pedaços ao tocar o chão de cimento — Agora... está perdoado — conclui virando-se para a saída sem olhar para trás, deixando o homem sem vida, com os olhos esbugalhados mirando o vazio de sua própria existência.


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BlackoutWhere stories live. Discover now