Dois olhos Satânicos

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Poe é o maior expoente da literatura de mistério e do macabro. Como grande representante do romantismo gótico americano, ele era hábil em traduzir pesadelos, tocar os meandros obscuros da inconsciência e da alma e transcrever os maiores medos do homem. Um artesão das palavras, o poeta, por vezes melancólico, evidenciava a amargura de uma vida inconsistente em personagens introspectivos e insanos, aterrorizados pelo fardo testemunhado ou até mesmo sentido. Rica fonte de inspiração para escritores vindouros como o contemporâneo Stephen King, ele teve vários de seus mini-textos e poesias adaptadas para o cinema, com variações criativas, desde 1910, na fase do silêncio cinematográfico, com O Escaravelho de Ouro (na França) e O Poço e o Pêndulo (na Itália), atravessando décadas na pele de grandes ícones do gênero.

Depois da experiência positiva com a trilogia dos mortos e a antologiaCreepshow – Show de Horrores,George A.Romero, em fase inspirada, foi um dos “mestres do Terror” selecionados para a produção de um filme baseado em obras de Edgar Allan Poe. Era para ser uma produção única, organizada em pequenos segmentos, com os toques particulares de John CarpenterWes CravenDario Argento e Romero – todos em grande ascensão no gênero. Com a desistência dos dois primeiros, Argento e Romero iniciaram a pré-produção do que viria ser Dois Olhos Satânicos, a partir de dois segmentos de uma hora cada, transbordando Poe em cada frame, desde a abertura, na narração em formato documentário, com a apresentação da casa onde morou o escritor em seus últimos dias, em Baltimore, seu “escritório” e seu túmulo.

A Verdade no Caso do Sr. Valdemar(The Facts in the Case of M. Valdemar, dezembro de 1845)

Um conto curto, com poucos personagens, mas carregado de melancolia e horror em estado puro. O narrador é um estudioso do magnestismo de Franz Anton Mesmer, um médico que utilizava sua técnica no século XVIII para curar pacientes – e trouxe os fundamentos do que viria a ser o hipnotismo. Ele recebe uma carta de seu amigo moribundo Ernest Valdemar, em estado terminal dephthisis (tuberculose), com uma previsão de falecimento em 24 horas. O narrador apresenta seu experimento, até então nunca realizado com alguém próximo da morte, e volta na noite seguinte para realizá-lo rapidamente, pois Valdemar teme que não tenha muito tempo.

O paciente é mesmerizado. Embora seu corpo não apresente batimentos cardíacos ou qualquer sinal vital, Valdemar continua se comunicando com uma voz preta proveniente de sua garganta fria e do tremular da língua. Com o passar do tempo, o sofrimento se cessa com os pedidos do morto-vivo para que seja despertado e possa morrer – fato que o conduz a uma massa podre de substância pútrida, provando que a técnica pode perdurar e ser indolente, mas não permite nada mais que a comunicação. “A Verdade no Caso do Sr. Valdemar” é um conto gore, descritivo, com muita influência do mesmerismo adotado pelo espiritualista Andrew Jackson Davis, uma das leituras de Poe, e, sobretudo, pela morte deVirgínia, esposa do escritor, vítima de tuberculose.

Pela narrativa curta, em ambiente único, seria impossível traduzir para um média-metragem de uma hora de duração sem acrescentar cenas desnecessárias ou alongar em diálogos. Para isso, Romero incluiu em seu roteiro a esposa de Valdemar, Jessica (Adrienne Barbeau, que já havia trabalhado com Romero como a esposa chata do segmento “Encaixotado” deCreepshow – Show de Horrores, 1982), com a intenção de aplicar um golpe com seu amante, o médico Dr. Robert Hoffman (Ramy Zada, da antologia Depois da Meia-Noite, 1989), que tem especialidade em hipnotismo. Usando a técnica, eles aliviam a dor de Ernest Valdemar(Bingo O’Malley, de Super 8, 2011) e, ao mesmo tempo, passam a perna no advogado Steven Pike (E.G. Marshall, de 12 Homens e uma Sentença, 57). Devido a questões burocráticas, Jessica deve ser capaz de manter seu marido vivo por três semanas, para que o testamento tenha validade e ela possa herdar sua fortuna, estimada em mais de três milhões.

Numa das hipnoses, Valdemar morre, antes do prazo determinado. Jessica e Robert levam seu corpo ao porão para escondê-lo num freezer até o restante do período combinado, mas o cadáver continua se comunicando com eles, como se a consciência permanecesse viva depois da morte. No Além, ele diz que está num lugar escuro e frio, enxergando luzes distantes e que há “outros” com ele, querendo utilizá-lo como uma passagem para o mundo dos vivos.

Apesar da extensa liberdade criativa, a história se mantém como um interessante exemplar de vingança sobrenatural, com toques de mistério e pessimismo. Romero parece à vontade ao trazer mortos à vida com bons efeitos de Tom Savini, porém a sequência em que Valdemar conta o erro do médico ao despertá-lo acaba por soar ainda mais inverossímil que o conteúdo, além de parecer um diálogo bobo, estereotipado. Destaque para a participação de Tom Atkins, mais uma vez como detetive.

HISTÓRIAS DE TERRORWhere stories live. Discover now