O gato preto

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Ao lado do poema O CorvoO Gato Preto é um dos textos mais conhecidos de Edgar Allan Poe, além de ter inúmeras adaptações e versões cinematográficas. No texto, o narrador deixa evidente seu carinho pelos animais, tendo vários exemplares em casa, incluindo um gato preto chamado Pluto. Por anos a relação entre os dois, e a convivência com a esposa, foi muito boa, mas tudo se finda quando ele se envolve com bebidas alcóolicas. Certa noite, tomado pela bebedeira e acreditando que o gato o está evitando, ele fere um dos olhos do animal com uma faca, encerrando a amizade entre eles e iniciando sua obsessão doentia.

A simples presença do gato passa a despertar no narrador seu lado mais perverso, ao ponto que, num momento de insanidade, ele o enforca numa árvore. Após um breve incêndio em sua casa, o animal aparece gigante e enforcado numa marca de impressão causada pelo fogo. Obcecado pelo felino, o narrador resolve recolher numa taverna um animal idêntico, com um olho varado e de mesmo tamanho – a única exceção é uma mancha branca no peito, algo depois identificado como a marca da forca. Depois de tropeçar no animal na adega da nova casa, o narrador, num impulso, tenta matá-lo com um machado mas é impedido pela esposa, que acaba vítima do marido.

Ele a empareda no local para esconder seu corpo. O plano parece dar certo, até o dia em que a polícia vai à adega e escuta um som estranho proveniente da parede. Ao arrebentá-la, os policiais encontram o gato e a esposa emparedados para surpresa do narrador. “Eu havia emparedado o monstro dentro do túmulo” são as palavras que encerram um dos momentos mais perturbadores da literatura clássica.

A primeira adaptação cinematográfica foi feita em 1934 com Boris Karloff e Bela Lugosi. Este último voltaria a encarar o felino com Basil Rathbone em 1941 sob a direção de Albert S. Rogell. Depois seria a vez dos astrosVincent Price e Peter Lorre, em 1962, na antologia Muralhas do Pavor, de Roger Corman, enfrentarem o bichano demoníaco. Posteriormente o conto teria uma versão italiana em 1972 quandoSergio Martino comandaria o gatoSatã em Il tuo vizio è una stanza chiusa e solo io ne ho la chiave, lançado por aqui como No Quarto Escuro de Satã, numa pincelada à obra original.

Em seu segmento, Argento homenageia diversos textos deEdgar Allan Poe, permitindo que o espectador se interesse em conhecer mais sobre a sua obra genial. O experiente Harvey Keitelinterpreta Roderick Usher(referência ao conto A Queda da Casa de Usher), um fotógrafo criminal experiente, que tem a intenção de publicar um livro de imagens. Na cena de abertura, ao cobrir o assassinato de uma mulher, fatiada por um pêndulo (referência ao conto O Poço e o Pêndulo), o protagonista já demonstra uma certa frieza ao lidar com corpos decompostos. Ele vive com a mulherAnnabel (referência ao poemaAnnabel Lee), que acaba de adotar um gato como companheiro de suas aulas de violino. Sem nome o bichano não nutre simpatia por Usher, arranhando-o logo no primeiro contato – algo que o incomoda por notar um carinho especial da esposa pela criatura. Annabel chega a trair Usher com um dos alunos, já tendenciando o protagonista ao desfecho trágico.

Usher aproveita um momento sem a esposa e faz uma sessão de fotos torturadora com o gato, usando o trabalho para seu livro. Para desespero de Annabel, o animal desaparece da residência, e a publicação do marido a faz acreditar que ele o assassinou. Em outro dia como fotógrafo, Usher registra o cadáver de uma mulher, encontrado no cemitério sem os dentes (referência ao conto Berenice), e a prisão de um suspeito – Tom Savinivestido como Edgar Allan Poe. Assim como no conto, Usher encontra um gato parecido num bar, sob o comando da misteriosaEleonora (referência ao conto de mesmo nome) – uma citação forçada, aliás, já que a atriz Sally Kirkland (Todo Poderoso, 2003) se anuncia de modo extremamente artificial.

Levar o animal para casa coincide com as intenções de fuga de Annabel, o que ocasionará um conflito sangrento ao estilo Dario Argento de fazer cinema em sua fase áurea. O cineasta italiano altera elementos essenciais do conto e acrescenta momentos intensos na sequência final, com mais cadáveres e uma sintonia com um momento chave do texto de Poe. Apesar da violência gráfica, o que mais chama a atenção é a atuação crua de Harvey Keitel, já antecipando seu estilo falastrão de Cães de Aluguel.

Com boa direção e elementos depressivos, O Gato Preto fecha com grande estilo a antologia, deixando o espectador ansioso por uma continuação, com outras referências como a do vizinho denominado Sr.Pym, cuja esposa é interpretada por Kim Hunter (a Zirada franquia Planeta dos Macacos), dialogando com o texto O Relato de Arthur Gordon Pym. Infelizmente, tanto Argento quanto Romero não fariam mais homenagens ao escritor, algo que coincide com uma queda de produção de ambos no início do novo milênio.

Lançado em VHS no Brasil comoDois Olhos Satânicos, pela Look Video, o filme saiu em DVD simples pela Paragon Multimedia, que é a própria famigerada Continental, com breves biografias, galeria de pôsteres e trailer. A qualidade da imagem está um pouco escura, mas nada que impeça de acompanhar o seu conteúdo, principalmente para os novos fãs do gênero, que não puderam testemunhá-lo na época do VHS.

Dois Olhos Satânicos traz Poe em sua essência, refletido na boa criação de Romero e Argento. Mortos e assombrações, vozes do além e sangue em profusão se unem para homenagear um dos escritores mais inspiradores da literatura universal. Uma antologia que faria Poe se sentir orgulhoso “destas saudades imortais“.

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