Ilusões Inofensivas

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Após toda aquela dramaturgia,enfim quebro o silêncio:
- Temos aproximadamente três horas para sair, escolher e comprar nossas fantasias, então sugiro que desfaçam essa cara fúnebre e mexam-se.

-Realmente...- Maya diz enquanto os dois paspalhos se retiram do meu dormitório. - Você tem dois minutos! -ela grita se referindo ao tempo que tenho para aprontar-me. Até parece!

Demorei cerca de seis minutos só no banheiro, porque não recebo ordens!

Ponho uma calça jeans com pequenos rasgos em seu comprimento, uma t-short preta meio amarrotada e um tênis cinza que eu não usava há meses. Caminho até a penteadeira, pego minha escova e começo a desembaraçar meu cabelo. Enquanto faço esse processo, começo a pensar nesta festa. De princípio achei essa ideia de "Baile à fantasia" desnecessariamente ridícula, contudo vejo que estar por trás de uma fantasia me conforta mais que minha real aparência. Na moral, eu não sei o que é autoestima! Além do mais, todo mundo da nova escola vai estar lá e a festa é na casa do Charles, primo mais velho da Maya, sendo assim, não vejo razões para não comparecer. Meu Deus! O Charles! Lembrei que eu tinha uma pequena dose de paixão por ele há um ano. Já fazem alguns meses desde a última vez que o vi e, sinceramente, nem lembrava dele até agora, o que prova que não sinto mais nada por ele. Assim espero. Digamos que "Sentimentos" e eu não somos lá melhores amigos.
Com o cabelo totalmente desembaraçado, sigo para encontrar meus amigos que estão à minha espera.

-Finalmente né. Pela demora, pensei que tivesse entrado no closet e ido para Nárnia. -Andrey brinca. Dou um tapa em seu braço e saímos.

Todas os comércios do centro de Cambridge estão fechando. Felizmente encontramos uma loja de fantasias aberta.
De princípio, não me agradei de nenhuma peça daquele local. Maya e Andrey desaparecem no meio da loja me deixando sozinha entre as fileiras de fantasias infantis. Os outros clientes aqui devem estar à se perguntarem o que uma jovem está fazendo na ala infantil. Mas é só me olhar para perceber que eu uso roupa de criança, porque são as únicas que realmente se adequam ao meu corpo e tamanho e, isso é vergonhoso, eu sei.
Meus amigos voltam do provador e meus olhos parecem não acreditar no que estão à ver neste momento. Maya está usando um vestido volumoso , amarelo, que cobre totalmente suas pernas. Como presumi, ela vai de princesa!
Andrey está com uma roupa cheia de contrastes e alguns detalhes azuis. Eles realmente vão fantasiados de A bela e a fera ou estou vendo errado? Que ridículo! Bom... Para eles deve parecer fofo, mas para mim... Sério, que brega!

- Devo me vestir de bule de chá falante e seguir vossas majestades ? - Falei com um sorriso sarcástico e provocador.

- Até que não seria uma má ideia! - Disse Andrey com uma mão no queixo.

- Nem que me pagassem!

Resolvo andar mais um pouco pela loja e estava prestes a desistir, quando avistei a fantasia perfeita : Sheila de Caverna dos dragões. Sempre gostei muito dessa personagem, então acho que dei sorte em encontrá-la aqui. A fantasia é um vestido rosa com uma fita azul abaixo da barriga, que mais parece um cinto, uma capa roxa cintilante e uma peruca ruiva bem curta. Nem experimento, pois sei que ficará perfeita no meu corpo magrelo.
Na hora de pagar, quase tive um súbito ataque do coração. Minha fantasia custava mais que meu guarda roupas inteiro. Ao ver minha boca entreaberta e meus olhos esbugalhados, Maya se oferece para pagar a minha fantasia. Nem êxitei em aceitar, já que a Maya é tão rica quanto o Justin Bieber... Se não for mais! Além do mais, essa foi a única fantasia que me interessou, então só tenho que aceitar e agradecer à minha amiga.
Ao sairmos da loja, uma mulher baixa e loira fecha as portas. Agora não resta mais nenhum comércio aberto em Cambridge e, se a roupa não ficar boa em mim, terei que ir fantasiada de mendiga , usando minhas próprias roupas.
No caminho para casa, há alguns garotos nos bosques de Silver Street, sentados no mesmo banco onde conheci a Maya e o Andrey. Eles assobiam e nem ouso me virar! Sei que não é para mim que praticam tamanha criancice e, isso deveria me deixar feliz... Mas não deixa! É chato andar com a Maya, porque ela é muito linda e bem formosa, chama muita atenção dos garotos e eu fico me sentindo um saco de batatas. Ninguém me olha quando ela está por perto, eu finjo não ligar, mas me dói não estar dentro dos padrões de beleza como as outras garotas e, pior, é saber que ninguém me ama justamente por não ser bela.
Sinto-me aliviada por chegar em meu lar. Jogo os sapatos e corro para o meu quarto. Meus amigos foram direto para suas casas. A Maya vai fazer alguns tratamentos caseiros com sua mãe para se preparar para o baile. O Andrey vai tentar convencer seus responsáveis à deixarem ele ficar até o fim da festa, porque provavelmente irá terminar de madrugada.
E eu vou dormir, porque acordar cedo no domingo... Ninguém merece!
Entro no quarto e me jogo na cama. Não demora muito até eu adormecer!
Começo a sonhar com o baile. Todos paravam o que estavam à fazer para me ver chegar. Ao descer de uma limusine, o Charles me cumprimentava e se oferecia para me guiar até o salão principal. - Divirta-se, querida! -ouço uma voz familiar... Mãe? É a minha mãe? -A gente volta pra te buscar às doze. - Pai? Meu pai acelera e eu entro com o Charles. "Não! Não deixa eles irem! Ta chovendo, eles não vão voltar! Não! Por favor, não posso perdê-los de novo! Esquece o garoto e o baile, seus pais estão partindo!" Meu subconsciente está à brigar com o meu sonho.
O Charles me puxa para dançar. É tudo maravilhoso e todos nos olham! Ele está se aproximando... O que ele está fazendo? Ele me beija e não recuo. -Eu te amo, Elizabeth Wolff - Ouço-o dizer e desperto do sonho com a voz da minha tia.

- Liza ? - ela está batendo na porta - Liza?

- Entra! - Falo esfregando os olhos.

- Já são cinco da tarde, o baile será às seis, não é? - minha tia perguntou e não a encarei. Ainda estava presa àquele sonho.

- Sim ! - bocejo - Papai e mamãe irão me deixar?

- O quê? - Tia Sula se espantou e me dei conta do absurdo que acabou de escapar da minha boca.

- Nada, nada! É... Pode sair, por favor? Preciso me trocar. - Tentei fugir da conversa.

- Ta... tudo bem. Oh, Liza - ela se vira para me chamar de novo - Seus pais estão bem, eu sei o quão difícil deve ser não tê-los contigo, mas não se entristeça com isso.

Espera.

- Como assim estão bem? Quem fica bem estando morto? A morte é algo terrível, não podem estar bem. - Disse e ela tapou a boca com a mão, rapidamente.

- Claro! Você tem razão... Perdão, pequena. Preciso... preciso ir. - ela falou tentando disfarçar algo.

Depois eu que sou estranha!

Fazia tanto tempo que eu não sonhava com meus pais! Senti saudades. E esse sonho maluco... Só aconteceu nele o que nunca vai acontecer de verdade. Mas parecia tão real! E se esse sonho for uma revelação? E se ele estiver tentando me mostrar que o Charles gosta de mim? Mas e àquelas pessoas ? Pareciam gostar de mim! Me notavam! E meus pais iriam voltar para me buscar.
Não! Nada foi real! Todos esses fatos se resumem em ilusões, talvez inofensivas, mas se eu ficar pensando, vou acabar me machucando . Nada disso tem nenhuma possibilidade de acontecer, então acorda, Liza.
Preciso me vestir.
Apanhei uma toalha e caminhei até o box que fica no quarto ao lado, era dos meus pa... Barro meu pensamento antes que seja tarde! Ligo o chuveiro elétrico e a água quente escorre pelo meu corpo enquanto tento tirar esse sonho da minha cabeça. Cada milímetro de água parece trazer consigo uma lembrança da época em que tudo era perfeito para mim. A leve fumaça que cobre todo box serve como tela e o chuveiro é o refletor. Cenas começam a se passar diante de mim. Uma criança no seu quinto ano de vida, rolando pelo cobertor branco que congela o chão da rua , seguida por seus pais que atiram bolas de neve entre si. Todos sorriem, parecem estar muito felizes. A criança cai e corta o joelho. Ela tenta chorar, mas seus pais dizem "seja forte, querida. Pessoas fortes não choram nunca! Mesmo se estiverem sozinhas." a criança volta à sorrir e recebe carinho.
Desligo o chuveiro e olho para o meu joelho esquerdo. A cicatriz está lá! Meus pais não! Nem vão estar... Nunca mais...

 E, como que por ironia da vida, depois desse dia nunca mais nevou em Cambridge. Parece até coisa fictícia.

Saio do box e volto para o meu quarto. Antes de tudo, seco meu cabelo e prendo num coque. Pego a fantasia e visto-a... Perfeita! Calço uma botinha preta que a Maya me emprestara e combinam bem com o look. Vou até o quarto da tia Sula e pego sua maleta de maquiagem. Nunca usei nenhuma daquelas coisas, mas já vi a Maya usando e não são difíceis de manusear. Passo um corretivo e depois uma base que, se encaixa bem ao meu tom de pele. Curvo meus cílios e depois aplico a máscara. Meu olho chora quando passo o lápis de olho, mas continuo. E para finalizar, um batom rosa cintilante.
Até o momento, eu sabia apenas o nome de cada coisa, só não havia tentado usar. Encaro o espelho... Até que não ficou ruim. Ponho a peruca e desço para esperar as altezas.
Minutos depois, ouço uma buzina e corro para fora. São eles. O Andrey está a dirigir o CrossFox prateado da Sra. Lion e a Maya está acenando para que eu entre.

- A sua mãe estava sobre efeitos de drogas quando autorizou você à pegar o carro dela? - Questiono o Andrey, ainda fechando a porta do carro.

- Claro que não. Se reclamar, te deixo ir andando! E minha mãe sabe que eu dirijo muito bem. -Andrey fala e da a ré, invés de acelerar e quase acerta o cachorrinho da vizinha.

- A GENTE VAI MORRER ! - Maya grita e o desespero é claro em seu tom de voz.

- Aperta o cinto e deixa de frescura! -Andrey diz pra Maya, que está no banco ao lado.

Comecei a rir quando reparei que a Maya estava trêmula, obviamente temendo morrer. Se eu não mostrasse ser tão fria, estaria pior que ela, já que o Andrey quase atropelou três pessoas e bateu numa casa em uma só curva.
Se chegarmos com vida à casa do Charles, suponho que a Maya irá voltar de táxi. E eu vou com ela, porque minha vida pode não ser lá essas coisas, mas não precisa acabar assim. 

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