Monólogos Reais

132 41 27
                                    


Os olhos empapuçados denunciam a insônia; Os lábios trêmulos delatam a gélida brisa que patinara a madrugada toda num ritmo suave; Pés aquecidos pelas meias felpudas e passos trôpegos que tentam, com dificuldade, finalizar o caminho até a abertura na parede onde se têm acesso à visão do exterior desta casa. Através da vidraça, é possível ver a pontual aurora se revelar lentamente e, seu brilho destrói por completo os últimos raios lunares que ainda manobravam pelo céu. 

Presenciar o alvorecer, de certa forma, renova as esperanças de quaisquer ser desacreditado da vida. Mesmo que ele carregue em sua bagagem vital centenas de desilusões e lembranças frustrantes, certamente é impossível opor-se à tamanha beleza. No entanto, este não é o meu caso! Somente nas vezes em que essa desgastante insônia me inquieta é que sou telespectadora do nascer do mais belo e caloroso astro. Geralmente, nas madrugadas em que não consigo dormir, pego meu material escolar e rabisco algum poema ou desenho. Porém, na madrugada de hoje eu praticamente pude ver a criatividade passar por mim e gritar "olé" , pois nada realmente produtivo me veio à mente.

  Eu já havia esquecido como esses bosques se enchem de pássaros de diversas espécies e como são lindos seus louvores matinais entoados em alto e bom som. Se aqui já existira algum ornitofóbico (alguém com um medo anormal e irracional de aves), certamente já se mudara ou veio à óbito, porque este bairro além de turístico para humanos, é também para onde as aves de toda Inglaterra migram no inverno, já que aqui não neva há muito tempo.

Em manhãs como esta, é comum ter meus pensamentos substituídos por sonhos, mas não sonhos como casar, ter muito dinheiro, viajar o mundo inteiro, ter dois carros,celular de última geração ou uma mansão em Dubai. E sim manter as pessoas que gosto por perto, não tendo que passar por despedidas indesejadas nunca mais.

A Silver Street é ainda mais linda pela manhã e, por incrível que pareça, é o horário em que ela é mais visitada.
Não sou do tipo de garota que sonha com um grande amor. Contudo, ao ver os amantes apaixonados atravessando os lagos em embarcações, dá até vontade de ter um. Por falar em amantes apaixonados, lembrei que quando cheguei da festa ontem com meus amigos, a tia Sula não estava em casa, então deve ter saído com algum pretendente e, fico feliz por ela. Fazia tanto tempo que eu não saía à noite, que já havia esquecido que a tia deixa as chaves embaixo do tapete, caso eu chegue antes dela.
A Maya me convidou para dormir em sua casa, mas recusei quando encontrei as chaves e fiquei por aqui mesmo. Durante a madrugada, pude detectar tudo quanto é som, menos o de passos, portanto, minha tia ainda não voltou pra casa. Ou então voltou, mas evitou fazer quaisquer barulho, o que acho pouco provável, já que ela é desastrada sempre que tenta tomar cuidado com algo. Nem preciso dizer que herdei isso dela, né?
Volto para minha cama praticamente me arrastando e ponho meu moletom que estava jogado numa cadeira perto dela. Sei que é demasiado cedo para usá-lo, mas o frio que faz neste quarto não me dá outras alternativas.
Sento-me no colchão e encaro a minha fantasia que está largada no canto do quarto. Dou risadas quando lembro das coisas que aconteceram ontem naquele baile: o sumiço dos meus amigos, a cara de retardada que eu fazia enquanto ouvia o Douglas falar, a cara mais retardada ainda que o Andrey fazia enquanto falava da Geovanna, as amigas "tico e teco" zombando de mim, aquele revoltado menino bonitinho tentando me diminuir e os ataques histéricos da Maya no carro. Mas o melhor da noite foi o quase churrasco de Liza ... Eu pulando e rodopeando, enquanto o Douglas me espancava com o cobertor da cadeira tentando apagar o fogo... Meu Deus! Agora estou rindo igual uma louca, mas na hora quase surtei. É cada mico que passo nessa vida viu...
Lembro que algumas vezes a tia Sula queria me levar para uma consulta com um psicólogo, mas eu me recusei em ir por pena dele, porque se eu contasse a minha vida, quem iria sair do consultório chorando não era eu.

Me levanto e caminho até o espelho. Estou parecendo um panda com os olhos pretos resultantes da maquiagem borrada e das olheiras e meu cabelo está mais bagunçado que meu closet, se é que isso é possível.
Resolvo ir até a cozinha para comer algo,pois estou faminta. Abro a geladeira, agarro a jarra com suco e despejo o líquido em um copo de vidro. Dirijo-me até a torradeira, mas recuo quando lembro que deixei os pães na geladeira. Ainda caminhando, sinto uma dor no lado esquerdo do peito,bem acima do coração. Eu costumava sentir essa dor quando eu era criança, contudo foram deixando de ser frequentes até cessarem... Ou pelo menos eu achei que tivessem cessado. Essa dor atual é bem mais forte do que costumava ser, parece até que alguém está golpeando meu peito com uma faca.

 A dor aumenta ainda mais e grito,deixando o copo cair e estilhaçar no chão. Não me sustento em pé e caio de joelhos. SOCORRO, POR FAVOR, ALGUÉM ME AJUDA! Como eu queria que esses gritos não estivessem apenas na minha cabeça. O pior é que não consigo identificar o que está acontecendo, na verdade nunca soube o porquê de sentir essas dores.

Que dor horrível, acho que vou morrer! E isso não é exagero ou drama, acredite.
Ouço barulho de risadas e da porta sendo aberta. Caio de bruços quando sinto um golpe mais forte ainda e fico tonta. No mesmo instante encontro forças para gritar Socorro.

- Liza ? - É minha tia, graças a Deus!

Ai, está doendo muito mesmo. Mas que droga é essa?

- Socorro! - Meu segundo grito sai mais como um gemido ou um sussurro.

- A voz vem dali! - Ouço uma voz masculina dizer e em seguida ouço passos rápidos.

- LIZA... LIZA PELO AMOR DE DEUS,O QUE HOUVE ? - Tia Sula me alcança, está desesperada.

Não consigo me mexer, as pontadas estão com força total. Minhas energias parecem estarem indo embora e minha vista está turva. Meus olhos lentamente se fecham; Escuto a voz da minha tia meio distante à me chamar. Em seguida não vejo ou ouço mais nada .
Posso sentir mãos sacudindo meus ombros e batendo levemente em meu rosto. Nesse momento não estou mais sentindo a dor, apenas sinto-me leve como uma folha que corre livre pelo céu. Entretanto, ainda sinto as mãos me tocando. Queria me mexer, mas pareço ter perdido o controle sobre mim.
Paro de sentir as mãos e agora tudo se resume à escuridão e silêncio.

Prometa FicarOnde histórias criam vida. Descubra agora