LIVRES DE QUÊ?

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Certo dia eu acordei disposto a andar. Eram sete horas da manhã, um sol lindo, alisando a pele. Quase sem nuvens no céu. Escutei alguns pássaros cantando em bando, andorinhas alegres. Coisa linda.

Estava me sentindo muito disposto. Sentia-me feliz demais para ficar em casa parado, sem fazer nada. viver é curtir a vida seja de que forma for mesmo se for apenas apreciando as pessoas andando nas ruas e dirigindo-se para seus trabalhos diários. Liguei para Queila, fiz a ela essa proposta: andarmos quilômetros pela Avenida Norte , uma das mais maiores de Recife. Veja meu plano! Ela disse que eu estava doido, jamais iria fazer uma loucura dessas. Mandou que eu fosse só, tinha o que fazer, queria dormir mais um pouco, iria ficar na cama até enjoar, que negócio de nadar que nada, que eu fosse só, jamais faria essa doidice.

Como eu estava muito disposto a andar, eu fui mesmo. Depois que eu comi bastante bolo, Macaxeira com charque e cuscuz. Senti-me revigorado e saí andando pelo Vasco da Gama até essa avenida citada. Lá fui eu.

Comecei a observar as pessoas andando pelas avenidas, os carros  sem rumo, quase, como se a vida não permitisse que parassem, como se precisassem andar para lá e para cá o tempo todo. Parei na Praça do Trabalho, em Casa Amarela, eram umas nove horas da manhã. Fiquei olhando aquelas casas e as pessoas que ali moravam, ditas classe media, uns pobres remediados. Algumas meninas jogando futebol, fazendo exercício físico pela escola que fica lá perto. Eu sentindo aquela paz dentro de mim, de quem está feliz da vida, sem dinheiro para nada, apenas uns trocados para comprar uns picolés e pipocas. Eu fiquei um bom tempo olhando para o nada e fui andar mais adiante.

Cheguei perto daqueles prédios da praça de Rosarinho, aqueles prédios enormes. Desejei ardentemente ser um morador daqueles, certamente eu teria de ter pele branca e ter um bom emprego, coisa que eu pensava.  Seria aceito ou não por eles. Talvez não, não teria o que eles chamam de "pedigree", família antiga, nome na sociedade. Seria preciso tudo isso ou ter dinheiro o bastante para ser aceito.

Eu não fiquei olhando muito tempo porque essas pessoas têm a mania de desconfiar de todo mundo que não tem o mesmo tom de pele deles. Mesmo se pobre, mas tem um tom de pele claro, eles aceitam mais facilmente do que aqueles que não têm. Essa lei não está escrita em livro algum, está escrita dentro deles. Os pais ensinam desde cedo que há uma barreira social entre eles e a maioria das pessoas, "não se aproxime deles", dizem.

A dissimulação deles é muito perceptível, basta prestar atenção. Sinceramente eu gosto de andar por esses lugares, o abismo entre nós e eles é gritante! Não há essa de um mundo maravilhoso onde as pessoas se amam de verdade, a não ser no Natal, onde as barreiras caem até certo ponto, depois voltam ao normal.

Entrei por uma rua onde havia uma padaria na esquina, onde só se via casarões antigos e prédios enormes, carros do ano e mulheres vestidas com roupas de grife desconhecidas para mim. Eu ia andando e vendo que os guetos não se restringiram à Segunda Guerra mundial, ainda existiam, mas não eram reconhecidos oficialmente . Apenas existiam e a separação todos sabiam que havia. Desejei mesmo ser um deles, ter aquele luxo, poder entrar e sair na alta sociedade, vestir-me bem, ser um rapaz bonito, ter aquelas aventuras todas. Seria possível ainda ser um deles? Mas eu não ia querer abdicar de minha pele e de minha família, seria mesmo eu, esse rapaz ébano, minha  história eu não ia querer mudar, porque faria isso?

A impressão que eu fiquei era que o que mantém a alta classe "segura" é essa separação, aceita por todos como algo certo. Para quê negar?

Eu vi aquelas lindas garotas com aquelas roupas leves de verão e aqueles cabelos bem tratados e aqueles corpos bem delineados e me convenci que esse tipo de mulher não foram feitas para pobres mesmo. Quanta elegância embrulhada debaixo da soberba e orgulho de ter nascido em uma família rica. Arrodeei a rua e saí , de novo, na Avenida Norte. Estava cansado e não aguentava andar mais. Sentei na praça do Rosarinho e descansei por mais ou menos uma hora, olhando a vida e cansado de ser preso dentro de uma classe que me puseram. Não estava cansado de ser eu, estava cansado de não ter o que desejava.

A praça tinha uma fonte e vários bancos de madeira, algumas pessoas sentadas, a maioria aparentava trabalhar por perto. As pessoas que moram por ali não gostam muito de ficar por nas praças, medo de roubo e sequestro. Nesse ponto eles são os prisioneiros. Se sentem livres quando estão presos.


MEU SER AO VENTOWhere stories live. Discover now