N O V E M B R O

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L O U I S

Quando penso na padaria, penso em tudo junto. O barulho das folhas secas de outono empilhadas na frente da porta dos fundos, sopradas para o beco, onde ficaram presas. O brilho das tigelas da batedeira e dos balcões sob as luzes fluorescentes depois de Harry terminar de limpar tudo e fechar. O cheiro do pão assando, o fermento vivo esfarelando entre os dedos, a voz de Harry atrás da minha orelha, inclinado por cima do meu ombro me vendo jogá-lo na tigela e dizendo: “Assim mesmo. Exatamente.” A maneira como ele movia o braço em golpes curtos e certeiros ao cortar a parte de cima dos pães, pouco antes de colocar a grelha cheia de formas dentro do forno. O inverno chegou tarde.

Outubro virou novembro e eu passei um longo e frio outono atrás de balcões repletos de farinha e massa crescendo, dedos grudentos, música alta e Harry trabalhando com o boné virado para trás, um avental amarrado na cintura e aquele sorriso pretensioso no rosto. Harry é a padaria. Não consigo imaginar o sentido dela sem ele lá, e não consigo imaginá-lo – a sua melhor versão, a que ele raramente deixa as pessoas verem – sem aquela cozinha como cenário para seus movimentos.

Harry se abaixando para pesar uma porção de grãos. Harry fechando a porta do forno com o ombro e ligando o cronômetro. Harry sovando a massa com as duas mãos, com farinha até os cotovelos, movendo-se no ritmo tranquilo de alguma música dance brega escolhida por Zayn.

Lá, na padaria, enquanto o resto do mundo estava dormindo, o tempo parava e nós encontrávamos alguma coisa fora dele. Eu e ele nos tornamos nós naquela cozinha. Muito antes de Harry me beijar, eu passei uma vida ali com ele, banhada em luz amarela, batizada em água morna da pia, consagrada ao nascer do sol quando abríamos um pão, quando enfiávamos a mão nele e provávamos o que havíamos feito. O que fazíamos não era perfeito. Certa noite, esqueci o sal. Outra vez, coloquei água muito quente e matei o fermento. Havia noites em que Harry se esquecia de me dizer alguma coisa vital e outras em que ele decidia não me lembrar de algo, só para ver se eu faria certo. Ele se continha e eu nem sempre era corajosa o suficiente. Eu não confiava em mim mesma. Nós fracassávamos na mesma medida em que éramos bem-sucedidos. Mas penso no que teria acontecido se ele não tivesse saído para me buscar. Acho que eu poderia ter ficado no meu carro para sempre. Poderia ter continuado fazendo curvas apenas para a direita. Talvez nunca tivesse aprendido a não ter mais medo e aqueles homens continuariam me seguindo, para sempre. Só posso ficar feliz pelo fato de as coisas não terem sido assim.

Em vez disso, Harry saiu, e eu entrei. Depois daquilo, eu raramente queria estar em qualquer outro lugar.

– Você está zumbindo de novo.

Estou no meu canto, uma pequena área entre a pia e a mesa comprida que fica encostada na parede, na qual Harry alinha as tigelas. Gosto desse espaço porque normalmente consigo ver apenas um pedaço de Harry por vez. Observo as botas dele, as pernas das calças dos joelhos para baixo, o avental. Nessa hora da noite, quando sova as massas, Harry está sempre se mexendo. Alterna o peso do corpo de um pé para o outro enquanto alimenta e mexe o preparador de massa. Vai da pia para a batedeira, depois para a geladeira e o depósito, em seguida volta à batedeira, então à pia, depois vai até o balcão para pegar alguma coisa que esqueceu. A forma como ele se mexe é quase mais do que eu consigo suportar. Sua graciosidade preguiçosa. Sua habilidade. Seus braços aparecem no meu campo de visão quando ele tira uma tigela da bancada e põe a seguinte. Ele se abaixa e eu vejo o boné e o pescoço dele. Vejo seu rosto de perfil, sua calça jeans justa na perna dobrada, o formato da panturrilha.

Consigo lidar com ele aos pedaços. São todos belos pedaços, mas não me fazem suar de nervoso, como ontem à noite, quando chegou a hora de ir embora e ele me acompanhou até a porta dos fundos, pôs a mão na maçaneta e disse alguma coisa que o fez sorrir e se inclinar na minha direção. Não sei o que foi. Não consegui ouvir, porque a forma como ele mexeu o braço fez a manga da camiseta se levantar e revelar todo o seu bíceps e algumas tatuagens, uma curva definida de músculo retesado no braço apoiado no batente da porta. Depois de ver o bíceps exposto, cometi o erro grave de olhar para a boca dele, para o formato dos lábios, em seguida para as maçãs do rosto, o queixo e os olhos. E me esqueci de escutá-lo. Esqueci como respirar ou existir fora do rosto de Harry.

ProfundoWhere stories live. Discover now