F E V E R E I R O

747 67 119
                                    

H A R R Y

Janeiro terminou. Fevereiro chegou. Parei de vender maconha e me livrei do meu estoque. Sem Louis por perto, a padaria ficava morta. Eu trabalhava muito e estudava enquanto o pão crescia, ouvindo o zumbido das lâmpadas fluorescentes. Era chato. Chato e triste. Passei três semanas sem vê-lo, e, mesmo assim, ele permeava toda a minha vida. Minhas lembranças, meus sonhos, meus pensamentos. Acontece que não se pode cortar alguém do coração apenas porque se quer.

Eu não queria magoá-lo. Não queria dar a ele o poder de acabar comigo. Não queria trepar com ele e ir embora como se não significasse nada, como se ele não significasse nada. Eu só queria estar com ele. O tempo todo. De todas as maneiras. Apesar de ir embora e apesar de não o merecer, era isso que eu queria. Mais fundo ou nada, ele disse antes de ir embora da minha casa e da minha vida.

Fiquei assustado demais para tomar uma decisão. Assustado demais para ir atrás dele, contar-lhe o que ele queria saber, me ajoelhar e implorar, se fosse preciso. Eu estava preso demais a todas estas perguntas para as quais não tinha resposta: E se você for atrás do amor da sua vida e ele te ferrar? E se não for e você perceber que já está ferrado? E se não houver resposta certa? Apenas você, o garoto que você ama e o seu medo. Um relógio correndo, uma mãe em quem não se pode confiar, uma irmã que precisa de você, um pai determinado a ferrar com qualquer coisa boa em que você põe as mãos. Eu fugi do mais fundo, mas nunca pensei muito na alternativa. Nada ou mais fundo.

A escolha que eu deveria fazer. Que tipo de babaca escolhe o nada?

A fumaça enche os meus pulmões, e faz tanto tempo que não fumo que o barato é imediato. Só que o barato é péssimo. Amplifica o meu desânimo de tal forma que consigo sentir meus lábios virarem para baixo. Minhas narinas se alargam. Dou outra tragada profunda. Estou na varanda atrás do restaurante, fazendo um intervalo de cinco minutos para fumar em meio à movimentação do Dia dos Namorados. Está frio na rua e os sons da cozinha são abafados pelo isolamento e pelo acabamento em madeira. As gorjetas estão boas esta noite. Eu deveria estar contente por ter um trabalho, mas me sinto péssimo.

Estou há 22 dias sem ver Louis. Na janela, contra a escuridão do lado de fora, meu reflexo me encara, furioso e mau. Pareço o meu pai. Estou com a idade que ele tinha na primeira memória que tenho dele. Ele me deu uma bicicleta com rodinhas laterais e o Homem-Aranha no assento. Eu o achava incrível. Meu pai, quero dizer. Não o Homem-Aranha, embora o Homem-Aranha fosse muito legal também. Meus pais estavam sempre se beijando, se tocando. Eu não tinha permissão para ir para a cama da minha mãe de madrugada quando ele aparecia. Eles faziam uns barulhos lá dentro, e eu precisava fechar bem os olhos e afastar os pensamentos.

Deitava no sofá, dentro de um saco de dormir velho de náilon verde, e ficava esfregando o forro acetinado embaixo do queixo, pensando em como seria incrível quando eles se casassem. Aí eu teria pai e mãe. Crianças com pai e mãe moravam em casas com jardim. Eu sabia disso porque observava os alunos na escola que tinham o que eu queria, e a coisa mais importante que elas tinham eram os dois pais juntos, como um casal. Pais com emprego e aliança de casamento que iam às apresentações com câmera de vídeo e acenavam.

A 1,5 metro de onde eu ficava, do outro lado da parede de compensado, a cabeceira batia fora de ritmo. As vozes dos meus pais se misturavam, baixas e cheias de urgência, cheias de dor. Eu achava que não demoraria muito para eu ganhar um cachorro que faria companhia ao gatinho que meu pai havia trazido do nada na semana anterior. Não demoraria muito e tudo ficaria perfeito. Mas não ficou. As aparições dele nunca duravam. Dessa vez, ele discutiu com a minha mãe e ela não conseguiu acalmá-lo.

Meu pai ficou reclamando de quanto ela havia gastado numa blusa nova. A briga se transformou em um sermão sobre as reclamações dela, a carência dela, o fardo inútil de merda que nós dois éramos. Ele entrou no carro bêbado, deu ré na direção da estrada, levantando cascalho por todo lado, e saiu tão rápido que atropelou o gatinho. Então parou. Eu me atirei de joelhos ao lado do carro. Ele saiu do automóvel enquanto eu e minha mãe ficamos olhando. Coitado do gatinho.

ProfundoWhere stories live. Discover now