Mestre e Aprendiz

623 66 18
                                    

Kara chegou ao escritório no dia seguinte já sabendo das novidades pelos jornais. Saíra em todos eles, inclusive em plantões nas emissoras de televisão. A astuta advogada de defesa Lena Luthor havia aconselhado sua cliente a se declarar inocente na primeira audiência do processo pelo homicídio de Peter J. Simmons Jr., marido da acusada. Assim sendo, a causa iria a julgamento e Helena Bertinelli Simmons aguardaria em liberdade.
       
-- Queria falar comigo, pop star do momento? -- perguntou a mais nova, entrando na sala de Lena.
       
-- Feche a porta.
       
-- Tá bom assim?
       
-- Sente-se.
       
Ela obedeceu de novo.
       
-- Aqui estou eu.
       
-- Notou alguém se aproximando de você, ultimamente? Alguém que não fazia parte da sua vida, antes.
       
-- Um monte de gente, né? Eu entrei para a faculdade, é normal.
       
-- Da faculdade não, alguém de fora.
       
-- Como assim?
       
-- Andou falando do caso Bertinelli Simmons por aí?
       
-- Claro que não, Lena.
       
-- Nem com a And? Mike e Winn, quem sabe...
       
Kara hesitou.
       
-- Apagou o que eu te disse na primeira semana, Kara?
       
-- Do que você está falando?
       
-- Estou falando da liberdade de uma pessoa, ou de várias. Os casos que discutimos aqui dentro são secretos. Os clientes confiam em nós.
       
-- Eu não disse nada comprometedor, só comentei o trabalho, Lena. Eles são a minha família.
       
-- Pois seria bom que você não tivesse uma, já que claramente não consegue manter a língua dentro da boca.
       
-- Eu confio neles plenamente. Uma pena que você não consiga fazer isso com ninguém -- devolveu Kara.
       
-- Vou te dar um exemplo bem pequeno. Você confia plenamente no Winn, que confia plenamente no Mike, que confia plenamente na própria irmã, que confia plenamente na melhor amiga, que confia plenamente em uma outra possível amiga e esta, quem sabe, confia plenamente nos próprios pais. E por aí vai. E para haver um jornalista nisso é um piscar de olhos, Kara.
       
-- Eu não falei nada importante, tá legal? Tá de mau humor porque eu contei que a “senhora Simmons” é seu casinho do passado?
       
Lena estreitou os olhos.
       
-- Como disse?
       
-- Não era disso que estava falando?
       
A advogada recuperou o fôlego lentamente.
       
-- Falava da alegação.
       
-- Ah, isso. Mas é ela, não é? A tal Helena?
       
-- Não sei do que você está falando, mas por via das dúvidas, este assunto está encerrado. Para sempre. Ouviu bem?
       
-- Ok.
       
-- “Eu ouvi bem, doutora Luthor” -- disse Lena.
       
-- Tá, tá. Eu ouvi muito bem, doutora Luthor. Satisfeita? Posso sair?
       
-- Não -- Lena mudou de posição sobre a poltrona. -- Como foi no aeroporto?
       
-- Tudo bem. A Andrea entendeu que você não pôde estar presente, de novo, por causa de uma audiência.
       
-- Era em NY.
       
-- Sim, sempre há um motivo forte o bastante para você -- disse Kara.
       
-- Ela já ligou do Canadá? Chegou bem?
       
-- Sim, doutora Luthor. E agora, eu posso sair?
       
-- Não.
       
Kara bufou.
       
-- Que quis dizer com sempre há um motivo forte o bastante para mim?
       
-- Você entendeu bem. Sabe, é fácil inquirir uma reles estagiária daí onde você está, e pisar nos outros como se não fossem nada, Lena. Ops, doutora Luthor. Eu queria ver você manter essa cara lisa se não tivesse mudado a imprensa de lado, se tudo desse errado.
       
Lena riu e a pegou de surpresa.
       
-- Tripudie, Ka. Ambas sabemos que você daria tudo o que tem para estar no meu lugar. Não fomos as únicas a perceber isso, nossos amigos e até mesmo o George concordam: somos iguais. Ops, esqueci, eu sou a doutora Luthor e você é só uma garota que esconde que fica orgulhosa quando te chamam de Lena 2 -- a advogada sorriu. -- Agora pode ir.
       
Kara deixou a sala, mas deu apenas dois passos no hall antes de voltar, enraivecida e talvez envergonhada, mas sem dúvida disposta a uma revanche.
       
-- Posso desejar um futuro profissional parecido com o seu, Lena. Mas eu já tenho hoje uma coisa que você sempre quis e nunca terá.
       
-- Oh... “Amigos”? -- disse, com pouco caso.
       
-- A Andrea.


* * *

Winn notou que o namorado estava nervoso. Os dois estavam se preparando para sair de casa, iriam a um bar com o primo de Mike, que acabara de se mudar para a cidade.
       
-- Vai me dizer o que é? -- perguntou Winn.
       
-- Não é nada. É só uma ida a um bar, não é?
       
-- Tem alguma coisa sobre o Santiago que eu deveria saber?
       
Mike se sentou no sofá, esfregando as mãos, antes de responder.
       
-- Ele foi... Foi o primeiro cara... O...
       
Winn refletiu por alguns segundos.
       
-- Ele é gay?
       
-- Não. Quer dizer, não sei. Não era, pelo menos, e não parece... E nunca me disseram nada. Mas...
       
-- Respira...
       
-- Ele sempre teve namoradas. Uma porção delas. É um craque do futebol, veste-se mal, imita o próprio pai em tudo. E o pai dele é o estereótipo do grosseirão do interior, não sei como a minha tia o suporta.
       
-- Mesmo assim vocês tiveram algo -- observou Winn.
       
-- Foi quando eu tinha quatorze anos, a primeira vez. Ele tinha dezesseis, eu não sabia o que estava fazendo direito... Ele comentou alguma coisa sobre ser normal, entre primos, mas avisou que eu não deveria contar a ninguém.
       
-- E o que foi que ele fez?
       
-- Eu... Eu... Fiz sexo oral nele. Foi por uma semana, quando os dois passávamos as férias na casa da minha avó, depois que todos iam dormir.
       
Winn tomou a mão do namorado entre as suas e a beijou.
       
-- Isso te incomoda? Você considera que foi forçado a isso?
       
Mike demorou a responder. Pela primeira vez alguém tinha insinuado que aquilo poderia ter sido um abuso, mas ele nunca tinha pensado daquela forma.
       
-- Ele era mais velho e eu confiava nele, mas... Não posso mentir, eu não era obrigado, não. Da primeira vez não quis porque tive medo das consequências, mas não porque não desejasse.
       
-- Você já sabia com quatorze anos que desejava homens?
       
-- Depois do que aconteceu com o Santiago ficou tudo claro. Eu gostava, por isso tinha aceitado. Mas fiquei com um medo tremendo de ele contar para alguém, dos meus pais descobrirem, coisas assim.
       
-- Não aconteceu mais?
       
-- Aconteceu. Todas as férias, sempre. Quase todas as noites, às vezes de dia também, se tínhamos oportunidade. Fizemos outras coisas também, ele foi o primeiro em tudo.
       
-- Até quando?
       
-- Até eu perceber que era inútil continuar, ele nunca ficaria comigo, nunca gostou de qualquer coisa além do meu corpo e do prazer que eu dava para ele.
       
-- Mike... -- ele suspirou cansado. -- Vocês se protegiam?
       
-- Não -- ele viu o olhar assustado do namorado. -- Eu sei, era loucura, ele ficava com um monte de mulheres e eu, depois de uns anos, também tinha aprendido a ficar com outros homens, mas não usávamos camisinha quando era um com o outro. Ele garantiu que só fazia isso comigo, e eu também, só com ele.
       
-- Mike!
       
-- Calma... Eu já fiz cinco exames depois da última vez. Sabe como eu sou preocupado com isso. Ele não me passou nada.
       
-- Quando foi que percebeu que era “inútil continuar”?
       
-- No fundo eu sempre soube. Mas a última vez foi depois do enterro da nossa avó, tem três anos, já, ou mais. Foi terrível, ele não queria e eu insisti tanto até acontecer de novo, mas é claro que foi péssimo, ele me machucou. Não de propósito, eu acho, mas porque no fundo não queria mais. Depois daquele dia não nos olhamos mais nos olhos, apesar de termos nos visto vez ou outra, por aí.
       
-- Sua família sabe?
       
-- Não. Ninguém desconfia dele. Mas ele parou de falar comigo depois que eu assumi. Às vezes nos falávamos por mensagens, ele me bloqueou. Deve ter tido medo que alguém pensasse alguma coisa. Típico de um hétero.
       
-- Não -- discordou Winn. -- Típico de quem tem insegurança com a própria sexualidade. E o que você me contou só prova isso. Ainda que tenha sido só você, o que eu duvido, ele ficou com um homem, teve um relacionamento por anos.
       
-- Não era um relacionamento, Winn.
       
-- Você não quer ver ele? Liga, inventa uma desculpa.
       
-- Não, não. Isso é passado, meu amor. Vamos sim, tanto melhor que voltemos a nos falar, para quebrar esse gelo absurdo.
       
-- Se é isso que você quer -- Winn se levantou e sorriu, estendendo a mão para o namorado. -- Vamos?
       
-- Uhum -- Mike sorriu de volta.

* * *

Helena estava sentada na sala de estar da casa de seus pais. Tinha as costas curvadas para frente e os cotovelos apoiados nos joelhos, detendo toda a sua atenção em observar seu filho brincando sobre o tapete, na outra extremidade do cômodo.
       
-- Seu pai me contou que ela esteve nessa casa de novo -- disse Mariza Bertinelli, aproximando-se da filha.
       
-- Queria que eu tivesse ido para National City outra vez? Mamãe, com todos esses jornalistas é quase impossível até mesmo ir ver o pôr-do-sol pela janela.
       
-- Por que escolheu Lena como sua advogada?
       
-- Eu não escolhi. Papai tentou todos os seus conhecidos aqui, e ninguém quis pegar o caso, por causa dos Simmons.
       
-- Não fale “dos Simmons”. Você é uma Simmons também, a morte de Peter J. não mudou isso.
       
-- A Martelli é hoje a maior firma de NC. E se quer saber, eu não fazia ideia que a Lena trabalhava nela.
       
-- Não pense que pode me enganar, Helena. É lógico que vocês mantinham contato. Parecerá que foi um plano das duas, se alguém um dia vier a descobrir quem ela realmente é.
       
-- E quem ela realmente é, mamãe?
       
-- Não se faça de sonsa, Helena. Eu nunca esqueci o que ela fez. Quase estragou a sua vida daquela vez e parece que desta ela conseguiu, não é?
       
-- A Lena foi, excetuando o meu filho, a melhor coisa que já me aconteceu. Não importa que ela me ignore agora, eu nunca vou esquecer o que vivi com ela.
       
-- Eu disse! Você continuou em contato com ela -- reafirmou Mariza.
       
-- Eu cumpri a minha promessa, se quer saber! -- Helena se alterou, mas depois retomou seu controle por causa da proximidade do filho. -- Eu fiz tudo o que vocês me pediram, terminei com a Lena, implorei que ela nunca mais me procurasse, e casei com o Peter. Aliás, casei com a Simmons Corporation, como eu sei que é como você pensa. Está satisfeita agora?
       
-- Não ouse falar comigo assim, tudo o que fiz foi pelo seu bem. Se esses jornalistas todos estão aí, é porque você é alguém importante, Helena. Mais importante do que jamais essa advogadazinha teria lhe tornado.
       
-- E muito menos feliz, também -- disse ela.
       
-- Ela é uma mulher, Helena. Vocês nunca poderiam ficar juntas. Mas felizmente você se curou e fez um bom casamento. Olhe para o seu filho! -- apontou Mariza. -- Está realmente arrependida? Você e a Lena nunca nem poderiam ter filhos, pra não falar de todas as outras coisas.
       
Helena pensou na última lembrança recente que tinha de Lena e não quis comentar nada sobre a ignorância do que sua mãe dissera. De outra maneira, talvez fosse verdade, Lena jamais teria um filho com ela, e já não era mais nem de longe uma pessoa com quem Helena planejaria passar o resto da sua vida... Mas contra todas aquelas impressões, havia um passado. Um passado que ela tinha escolhido lembrar como o melhor momento de sua vida. Não importava que não tivessem ficado juntas, que Lena não pudesse mais fazê-la feliz, não importava que não se vissem mais nem se falassem, não importava nem mesmo seu casamento e quaisquer pessoas com quem Lena pudesse ter se envolvido, Helena continuava amando a advogada do mesmo jeito que amou no primeiro sorriso apaixonado.

* * *

Os comentários de Lucy sobre a postura de Kara na faculdade a deixaram preocupada. Sem querer ela havia ganhado uma fama de esnobe que não combinava consigo, e quando seus colegas organizaram a terceira festa da turma naquele semestre, para comemorar a passagem da primeira bateria de provas, ela resolveu aparecer. Esmerou-se no figurino porque não sabia o que as suas colegas mulheres iriam usar, e acabou chamando mais atenção na chegada do que planejava.
       
-- Lu, que bom que você veio, eu não tenho assunto com mais ninguém.
       
-- Eu também não -- riu a outra. -- Quer uma bebida?
       
-- O que tem aí?
       
-- Nada ilícito, eu acho. Vi o cara preparando, acho que é vodka com suco de abacaxi e essência de hortelã.
       
-- Parece bom -- Kara sorveu um gole. -- Hmm, é ótimo.
       
-- Estão fazendo uns drinks bem legais. Esse pessoal sabe mesmo organizar uma festa.
       
Dois garotos apareceram para convidá-las para dançar. Um deles era colega de faculdade das duas e levou Lucy pela mão. Kara pensou em recusar o amigo dele, mas estava se esforçando para não parecer chata e acabou se juntando a eles. Depois apanhou um drink com gosto de cereja, sentou em uma roda onde um outro colega tocava violão, cantou com os outros, voltou a dançar, bebeu mais um pouco e com uma hora de festa concluiu que estava “animada”.
       
-- Ah, te achei de novo -- disse ela, ao topar com Lucy na fila do banheiro, formada porque uma garota exagerara e colocava o jantar para fora.
       
-- Você está em NC há muito tempo, Kara?
       
-- Um ano e meio.
       
-- Costuma sair?
       
-- Às vezes. E você?
       
-- Saio um pouco sim. Onde você costuma ir?
       
Kara ia abrindo a boca para responder quando lembrou que aquilo poderia dizer mais de si do que pretendia.
       
-- Fala aí -- insistiu Lucy.
       
-- Am... Eu vou com uns amigos numa boate chamada Empire. Mas não muito.
       
-- Na Empire? Como a gente ainda não se viu lá?
       
-- Você também vai?
       
-- Desde que fiz dezoito anos. A festa foi lá, inclusive -- ela corou ligeiramente. -- A música é legal e tal... Meus amigos gostam.
       
-- É, os meus também.
       
Encararam-se. Era a hora certa de dizer? Kara não sabia.
       
-- Claro... -- disse Lucy, em um tom de quem havia se lembrado de algo. -- Você disse que é amiga da Lena Luthor. Ela vive lá.
       
-- É... Nos conhecemos lá.
       
Kara vasculhava sua mente à procura de um motivo para mudar de assunto.
       
-- Primeira festa que você vem, da turma?
       
-- Sim. Ouvi falar bem das outras e resolvi aparecer -- mentiu.
       
-- Ah tá. Eu resolvi relaxar um pouco.
       
-- Tem mesmo que comemorar. Eu vi as notas no mural, você arrasou nas provas.
       
-- Ah, que nada -- mais uma vez ela desejou que o assunto fosse outro. -- Não vi você nas listas.
       
-- Um problema com a minha matrícula, as notas ainda não saem, vão parar na secretaria.
       
-- E mesmo assim você foi olhar o mural -- constatou Kara, com os olhos semicerrados.
       
Lucy apenas riu. Depois chegou a sua vez de ir ao banheiro e Kara perdeu a chance de arrancar algo que vira que existia no assunto. Esperou, olhou no relógio, alongou o pescoço, depois bocejou, e então ouviu a fechadura. Lucy saiu do banheiro e olhou para trás de Kara, verificando se não havia mais ninguém.
       
-- É, só sobrou você -- disse Lucy.
       
Kara não entendeu muito bem o que aconteceu depois, e quando viu, Lucy tinha fechado a porta de novo, só que as duas estavam dentro do cômodo.
       
-- Aaam... Lu, eu...
       
-- Empire, não é?...
       
-- Aham... -- Kara disse qualquer coisa, confusa.
       
-- Posso te fazer uma pergunta? -- Lucy se aproximou.
       
-- P... Pode.
       
-- Posso te beijar?
       
Kara deu um passo para trás, encontrando a parede. Uma garota linda como Lucy querendo ficar com ela? Não conseguiu acreditar, nunca achava que chamava a atenção.
       
-- Lu, eu... Não sei.
       
-- “Não sei” pra mim é sim, Kara -- Lucy se aproximou ainda mais, colando seu corpo ao de Kara. -- Nunca ficou com uma mulher?
       
Ela quase poderia ter rido.
       
-- Já, sim. Mas-
       
Lucy a interrompeu, com um beijo. Kara ainda estava em choque, tentando desesperadamente encontrar um argumento para sair dali e evitar tudo, e quanto mais as frações de segundo passavam, mais ela se desesperava, porque não tinha separado seus lábios dos da colega. Nem prestou atenção no beijo dela, se era bom ou ruim, se gostava ou não. Só queria sair daquele banheiro, ainda que continuasse apertada, e nunca mais fazer aquilo.
       
-- Eu só vim nessa festa por causa disso -- disse Lucy, assim que deixou os lábios de Kara.
       
-- Lu, eu preciso ir.
       
-- Agora?
       
-- Sim.
       
-- Que houve?
       
-- Eu... Eu tenho namorada -- sentiu-se ainda pior contando aquilo.
       
-- É, mas ela nunca está com você.
       
-- Teve de viajar, mas já está voltando.
       
-- Hoje?
       
-- Não, daqui a duas semanas.
       
-- Eu acho que é tempo demais para uma garota linda como você ficar sozinha.
       
-- Lucy...
       
-- Relaxa, Kara... -- Lucy a empurrou de volta à parede. -- Ninguém vai ficar sabendo. É uma festa, ficar é o que as pessoas fazem. Daqui a duas semanas você não vai nem lembrar...
       
Outro beijo. E depois mais um. Kara já não sabia se estava empurrando Lucy ou e a puxava contra si. Onde estava com a cabeça? Lembrou de Andrea, e sentiu-se mal. Muito mal. Mas depois sentiu raiva. Se sua namorada não tivesse resolvido viajar de uma hora para a outra, nada daquilo teria acontecido. Por mais que gostasse dela, Kara sabia que nunca poderia aproveitar de fato a faculdade e tudo de bom que ela poderia trazer se estivesse comprometida com alguém que mal entendia os seus dramas. Alguém ocupada demais com o projeto de mestrado para participar da vida da namorada.
       
Notou, depois de algum tempo, que Lucy começara a abrir o seu cinto. Kara tentou impedi-la com as mãos, sem interromper o beijo, mas ela insistiu, e quando Kara estava prestes a reclamar verbalmente, alguém bateu na porta e elas tiveram de parar.
       
-- Eu moro perto daqui, quer ir pra minha casa? -- convidou Lucy.
       
-- Não posso, Lu. Vamos sair daqui -- disse nervosa.
       
-- Melhor dizer “não posso” do que “não quero” -- Lucy sorriu e deixou o banheiro.
       
Kara saiu em seguida, sob o olhar curioso da namorada de um colega seu. Afinal de contas sempre teriam a desculpa de que mulheres iam ao banheiro juntas, mas o problema era a demora das duas. Saiu a passos firmes, sem olhar para trás.

* * *

Na manhã de sábado, por muito pouco Kara não chegou atrasada ao estágio na Martelli. Sua cabeça latejava e a ressaca não era apenas física, como também moral. Mal a garota havia começado a se situar, e uma das secretárias já lhe deu um pacote para que ela entregasse na casa de um dos clientes da firma. Para coroar a tragédia, o sol estava alto, brilhante e... Insuportável!

Uma hora depois ela estava de volta, mas não foi deixada em paz. Todos lá dentro pareciam ter tomado gosto por fazer Kara de mensageira. Normalmente os sábados eram bastante tranquilos quanto a isso, uma vez que muitos lugares não funcionavam nesse dia, mas até as onze da manhã ela não conseguiu sentar por mais que dois minutos.

-- Mandou me chamar de novo, chefinha? -- disse, ao entrar na sala de Lena.

A advogada esfregou o rosto, antes de abrir uma gaveta.

-- Sábados são trágicos!

-- Para quem sai toda sexta... -- disse Kara, sorrindo.

-- Toma.

Kara olhou. Lena havia estendido uma cartela de comprimidos.

-- Pra quê?

Lena virou os olhos.

-- Pra dopar você e lhe estuprar, Kara.

A garota riu.

-- Não posso ficar consciente? -- brincou.

-- Engraçadinha. É pra ressaca -- explicou Lena.

-- Hum. Valeu, tava precisando.

-- Tô vendo.

Kara sorriu, envergonhada. Tomou um comprimido e ficou aguardando, ciente de que Lena não lhe chamara somente por aquele motivo.

-- Então? -- quis saber a loira.

-- Eu fui meio grossa com você, outro dia.

-- Gente, esse comprimido é alucinógeno? Por um momento pareceu que você estava pedindo desculpas por alguma coisa, Lena! Onde eu consigo mais dessas pílulas?

A advogada riu, balançando a cabeça.

-- Esquece, Luthor, já passou -- disse Kara, fazendo um gesto vago.

-- Ótimo.

Kara pensou em se levantar e deixar a sala, mas pela enésima vez, sua curiosidade falou mais alto.

-- Esse caso Simmons está tirando todo mundo do sério -- disse a estagiária.

-- Ah é?

-- Ah, Lena! Está escrito na sua testa que você está transtornada por causa disso.

Ponderando em silêncio, Lena se lembrou que Kara já sabia quem era a cliente, e embora não estivesse a par dos detalhes mais sórdidos, fora ela e a própria Helena, Kara era quem mais conhecia a estranha natureza daquela aparente ironia do destino.

-- Lembra quando você me fez chorar depois que a And voltou para a Stacy? -- bateu na madeira três vezes. -- Agora sou eu quem está dizendo que conversar com alguém vai fazer bem.

-- Fazer bem para a sua curiosidade infinita, é lógico -- devolveu Lena.

-- Também. Não nego.

-- Você é boa em arrancar informações, Kara. Se não fosse tão boa, também, em passá-las todas adiante, seria a confidente perfeita.

-- Você não aprendeu a confiar em mim, não é?

-- Em ninguém -- respondeu Lena.

-- Certo. Mas enfim, profissionalmente falando, eu li os depoimentos que você me passou.

-- E aí?

-- Em si, tudo se encaixa perfeitamente. Está claro que o autor do crime era alguém da confiança da vítima, possivelmente alguém muito íntimo. Os pais dele, os empregados, os sogros, enfim, todo mundo têm álibi para a hora do crime. Exceto, claro, a indiciada. Aliás, é nisso que se fundamenta o inquérito -- disse Kara.

-- O que demonstra que as bases não são sólidas. Teoricamente, não foram tomados depoimentos de todas as pessoas “íntimas” da vítima. 

-- Mas Lena, há indícios de premeditação. Os empregados foram afastados da casa, o filho, a babá. E há o agravante de fraude processual. E essa incapacidade da indiciada de revelar seu paradeiro no momento do crime, isso é quase ridículo. Ela está assinando uma confissão, com isso.

-- Às vezes não é uma pergunta fácil -- comentou Lena.

-- Claro que é. Você, por exemplo, Lena, onde estava no dia 27 de fevereiro, no final da tarde?

-- Eu? Aaaam... Pergunta besta, Kara... -- Lena ficou séria e rígida de repente.

Kara a encarou com curiosidade, talvez com um ligeiro assombro.

-- Lena, você não foi viajar para NY nessa data, foi?

Continuando seu teatro, Lena permaneceu séria, mas alguns segundos depois, julgou que já tinha assustado Kara o suficiente.

-- Estava aqui, exatamente aqui, nesta sala, no momento de crime. Tenho dúzias de testemunhas.

-- Certo -- disse Kara, respirando aliviada. -- Eu até devo ser uma delas...

-- Entendeu o que eu quis dizer? -- perguntou a advogada.

-- Ahn?

-- Não existe nada que me ligue ao crime, ninguém jamais cogitou me indiciar, eu sequer estava na mesma cidade em que aconteceu e você é testemunha ocular disso. Mas bastou eu me recusar a responder onde estava na tarde em questão, e por pelo menos quatro segundos, o seu cérebro, Kara, trabalhou para achar indícios que pudessem me complicar.

Kara arregalou os olhos.

-- Você anda lendo pensamentos agora, Lena?

-- Foi a pílula que eu te dei -- apontou para a cartela que ainda jazia sobre a mesa.

-- Sem graça!

-- Não é só você. É uma reação normal -- explicou Lena.

-- Então a sua ideia é tentar provar que o inquérito se baseia nessa reação e não em provas físicas.

-- Em parte, sim -- admitiu a advogada.

-- De qualquer modo, a cliente precisa apresentar um álibi -- insistiu Kara.

-- Teoricamente, não.

Kara ponderou por alguns segundos.

-- Não me convenceu, doutora. Eu continuaria achando que foi ela.

Lena fez uma careta e respondeu:

-- Saco.

-- Vai ter de fazer melhor que isso, no tribunal -- continuou Kara.

-- É.

-- Você disse que em parte se basearia nisso... E o resto?

-- Vou confrontar a premeditação com a fraude. Não podem coexistir nesse mesmo crime.

-- Mas é claro que podem -- protestou Kara.

-- Especificamente nesse caso eu posso alegar que não.

-- Pois não vai convencer ninguém.

-- Você é osso duro de roer, hein pirralha?

-- Devo assistir séries demais -- piscou o olho.

Lena sorriu brevemente, e voltou a falar.

-- A fraude foi muito mal feita. Isso está grifado no inquérito, o que favorece a defesa, uma vez que abre espaço para comparação com crimes passionais. A cena do crime foi artificiosamente alterada com pressa, de maneira nem um pouco engenhosa.

-- Bem, não se pode acusar alguém de ser burro, não é? Pelo menos não pelo Código Penal -- brincou Kara.

-- Sensato, Kara, eu penso a mesma coisa, foi burrice. Uma burrice que certamente pode ser explicada como fruto de choque, de pressa e de desatenção.

-- Continue.

-- Choque, pressa e desatenção não cabem num crime premeditado. Confrontando os dois, há discrepâncias. Ainda construirei melhor essa argumentação, para o julgamento, mas pelo menos um desses agravantes eu posso derrubar.

-- Para diminuir a pena dela?

-- Para desmontar todo o inquérito, Kara. Eu começo por isso, e ganho o benefício de dúvida para o lado da defesa. Depois, entro com a parte que discutimos antes, a base fraca do inquérito. Em seguida, evidencio a dubiedade das provas periciais.

-- E depois?

-- Rezo, com fervor!

Kara balançou a cabeça, rindo. Lena lhe deu tempo para pensar em tudo, o que ela fez encarando o teto, repassando mentalmente a argumentação, tentando imaginar o peso disso num tribunal e as possíveis contra-argumentações da promotoria.

-- Muito bom, doutora -- disse.

Lena quase respirou aliviada.

-- Mas não o suficiente, pra mim -- terminou Kara.

Encararam-se seriamente.

-- Alguma ideia, pirralha?

-- Não vai ser uma ideia brilhante que salvará a Helena, Luthor. Arranque o álibi dela.

A advogada moveu a cabeça afirmativamente.

-- Bem, se mudar de ideia sobre a questão não profissional, sabe onde me encontrar -- Kara se levantou.

-- Uhum.

-- Até mais...

O Triângulo Where stories live. Discover now