Os novatos

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As aulas de Kara na faculdade recomeçaram oficialmente em março, mas ela decidiu faltar à primeira semana porque sabia que seus colegas estariam ocupados organizando o trote dos calouros e os professores acabariam não conseguindo ministrar qualquer conteúdo.

Suas classes noturnas já haviam começado, e três vezes por semana ela tinha aulas em uma faculdade privada de Direito, onde seus colegas, como ela, trabalhavam durante o dia, e os professores pegavam muito mais leve nas tarefas. Nas férias de julho ela pretendia cursar duas cadeiras no módulo intensivo e com isso, ao final do primeiro semestre, teria eliminado o equivalente a um ano de estudos.

Apesar da intensa carga horária, conseguia manter o bom humor de sempre. E utilizando todos os seus compromissos como desculpa, conseguiu não ficar pensando apenas na fofoca que se espalhara entre os estagiários da firma: Lena tinha voltado antes do previsto.

No dia seguinte, Kara não se preocupou em aparecer mais cedo no escritório, mesmo sabendo que seria um dia cheio. Quando chegou, topou com os três novatos bastante afoitos, claramente nervosos.

-- Ela já apareceu? -- quis saber Marcus, assim que pôs os olhos em Kara.

A garota fingiu surpresa com a pergunta e tratou de agir com a maior naturalidade possível.

-- Está falando da Doutora Luthor?

-- De quem mais? -- intrometeu-se Cristine.

A sala que os quatro dividiam estava um brinco. Na tarde anterior, quando a nova sócia da firma chegara, surpreendendo a todos, Kara e os outros três estavam num fórum distante dali, acompanhando um julgamento.

Por conta disso, o último “encontro” entre Kara e Lena ainda era aquele constrangedor flagrante na casa de Mike. Uma situação inusitada que deixara ambas incapazes de dar o primeiro passo, e simplesmente ligar para saber como andavam as coisas. A amizade tinha “esfriado”.

-- Deve estar a caminho -- Kara comentou qualquer coisa enquanto se acomodava diante de sua mesa e procurava algo com o que se distrair.

-- E o que faremos? -- perguntou Henry.

Kara suspirou. Como eram patéticos! Jim e as secretárias tinham assustado tanto aqueles três, que eles pareciam estar diante do juízo final. O mais curioso era que a própria Lena cuidara da seleção dos currículos, enquanto as entrevistas couberam a George. Kara não fazia idéia de qual fora o critério de Lena na escolha. Em sua incipiente avaliação, havia candidatos bem melhores dentre os oitenta e cinco recém formados que se habilitaram para as poucas vagas.

-- Vocês, eu não sei. Mas eu vou continuar com o meu trabalho -- ela apontou para uma pasta deixada sobre sua mesa.

Cinco minutos depois, o telefone tocou. Cristine atendeu e em seguida avisou aos outros:

-- Pessoal, cliente novo -- sorriu.

-- Mande entrar, oras -- disse Marcus.

A garota rolou os olhos.

-- Primeiro teremos de tirá-lo da prisão.

Os três olharam para Kara, que até então fingia não prestar atenção no conflito.

-- Acho que sabem o que fazer.

-- Você não vai com a gente?

-- Estou ligeiramente ocupada -- disse, sorrindo.

Ao perceber o desconforto dos novatos, Kara acrescentou:

-- Agora é pra valer... Boa sorte!

Rapidamente eles apanharam suas coisas e partiram. Kara ficou rindo, sozinha, das suas caras de espanto. Logo em seguida, apanhou o telefone e ligou para a secretária, em busca de informações.

-- Ka, bom dia! -- disse Lucy, muito animada, do outro lado da linha.

-- Ah, oi, bom dia. Acho que você não estava por aí quando eu entrei...

-- Não seja por isso, vou apanhar dois cafés e eu conto tudo pessoalmente. Aposto que quer saber sobre o caso dos novatos. Um minutinho!

Surpresa, a garota recolocou o fone no lugar e refestelou-se na cadeira. Lucy tinha sempre um prontuário atualizado de tudo o que se passava na Luthor & Martelli. E, confortavelmente, nunca se importava de dividir tudo com Kara.

Quando ela entrou, Kara lhe concedeu toda a sua atenção:

-- Obrigada pelo café.

-- Forte e doce, como você gosta – Lucy piscou o olho.

-- É. Mas e então? Essa debandada dos novatos é coisa da Lena?

-- Sim. O cliente ligou pra cá faz uns quarenta minutos. Fez isso assim que foi detido. Passei para o doutor Martelli e ele deve ter ligado para a doutora Luthor, pois foi ela que chamou os garotos.

-- Sabe do que se trata?

-- Não tenho idéia. Mas a julgar pela voz da chefinha, não é caso de rotina.

Kara riu.

-- Dado o empenho dela em colocar Marcus, Henry e Cristine para trabalhar logo cedo, ou é algo impossível de fazer, ou é uma palhaçada dela.

-- Será? Bem, você a conhece há mais tempo, certo?

-- Digamos que sim.

O olhar de Lucy se tornou cúmplice, enquanto ela se inclinava na direção de Kara.

-- É verdade o que dizem?

-- Qual parte?

-- Que ela teve um caso com a última cliente. Aquela socialite nova iorquina que aparecia na televisão.

“Helena” pensou Kara, escondendo suas conclusões em uma expressão facial neutra. Ante o silêncio dela, Lucy insistiu:

-- Ah, Ka, não se faz de funcionária padrão logo pra mim, né? Você sabe que seus segredos morrem comigo.

-- Sim, eu sei -- sorriu falsamente. -- Mas Lena costuma ser um túmulo sobre questões pessoais. Até pra mim.

-- Entendo. De qualquer forma, não devem mais estar juntas, considerando o número de vezes que eu liguei pra doutora e quem atendeu foi uma garota histérica querendo mil provas de que meu assunto era mesmo profissional.

Kara explodiu numa gargalhada.

-- Então você já conheceu a Andrea!

Lucy riu com ela.

-- Figurinha interessante. É bonita, pelo menos?

Dessa vez, Kara suspirou.

-- Até demais.

-- Imaginei.

Riram com cumplicidade. Àquela altura, Kara já tinha plena certeza que Lucy não era uma garota do tipo convencional. Inclusive nas escolhas amorosas.

Depois disso, as duas continuaram a conversa, onde Lucy contou como foi a chegada repentina de Lena e a recepção da chefe das secretárias, que logo tratou de enchê-la de trabalho.

-- Dessa parte eu estou sabendo -- lamentou Kara, finalmente descobrindo a origem das dez pastas a mais que apareceram sobre a sua mesa naquela manhã.

-- Ka, você não deveria deixar ela lhe explorar desse jeito!

-- Acho que isso faz parte da relação chefe-estagiária. Tenho de me conformar.

-- Por outro lado é bom. Demonstra que ela confia em você.

-- Pelo visto sim – disse Kara, passando a encarar a janela.

Na verdade, aquela questão estava sempre indo e vindo na mente de Kara. Porque às vezes Lena parecia confiar nela mais do que em qualquer outra pessoa. E em outras ocasiões, elas mais pareciam completas estranhas.

Por mais que tivesse se aberto tanto, dado tantas pistas sobre si, sobre o seu passado, Lena não lhe parecia uma figura clara. Pelo contrário: Kara achava, cada vez mais, que a advogada continuava sendo um completo mistério em forma de gente.

O telefone da sala tocou logo em seguida. Kara atendeu rapidamente:

-- Sim?

-- Kara, é o Marcus. Chegamos na delegacia, mas acho que vamos precisar de você aqui...

-- Qual o problema?

-- Olha, o caso é bem sério. Não estudamos nada desse tipo na faculdade.

-- Tente ser mais específico -- pediu a menina.

-- Não dá pra falar por telefone. Vem pra cá!

Bufando, ela desligou a chamada e se levantou.

-- Lamento, Lucy, vou ter de ir com eles. Nosso papo fica pra mais tarde -- carregou na expressão de desolo. -- Que tal um drinque depois do expediente? Ficarei ofendida se não aceitar.

Lucy sorriu sinceramente.

-- Fechado! Bem, com licença...


* * *


Os quatro estagiários só conseguiram voltar para o escritório depois do almoço. Kara ainda estava indignada com o fato de ter socorrido os outros por causa de uma simples formalidade. Ela estava lotada de trabalho na firma e não era sua responsabilidade ficar de olho nos novatos, e menos ainda, cobrir seus furos.

-- Alguma notícia do Jim? -- perguntou para a secretária de plantão.

-- A sala dele fica lá do outro lado, agora. Ele esteve lá a manhã toda.

-- Que legal que me avisaram disso... -- reclamou, cansada.

Atrás dela, entraram Marcus, Henry e Cristine. Eles rumavam para sua sala quando a secretária alertou:

-- Espero que tenha dado tudo certo. Tem alguém esperando vocês ali dentro... -- sorriu malignamente.

Os três viraram estátuas, com as faces brancas de medo.

Cada vez mais irritada, Kara resmungou:

-- Será que dá pra mais alguém aqui agir como uma pessoa adulta? Vamos de uma vez...

Mas intimamente ela sabia que, na verdade, dos quatro, era a que sentia mais medo daquele encontro.


O Triângulo Where stories live. Discover now