Capítulo 1, o da bomba

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HOJE

     "Pô, Lau, só uma cerveja" é uma das frases que mais escuto da minha melhor amiga. Mas, atente-se, aos fatos: depois de alguns anos de farra, seu fígado prefere suco de melancia com hortelã. O problema é que Ana é mais velha que eu, então esse argumento se dissolve com muita facilidade.

Passa das duas da madrugada e esse é o único dia e horário que eu e meus melhores amigos temos para ficarmos juntos em dois meses. Casamento. Filhos. Emprego. Uma médica legista dançando forró em cima do balcão. Uma médica legista dançando forró em cima do balcão?

— Ana, desce daí agora! — grito para mulher negra, girando com uma lata de cerveja gourmet, no fino espaço entre o bar e o salão. As botas pretas deslizando no cedo que deixa tudo com cheiro de vodka.

— Ela está se divertindo, Laura. — Rogério ergue as sobrancelhas grossas, mas se cala quando ergo as minhas. Sua cabeça está mais raspada que o usual e em compensação deve fazer uns três dias que ele não tira a barba.

Ana está descendo do balcão, ainda bem. Pensei que já tínhamos passado dessa fase, mas aparentemente só eu virei a amiga chata e responsável. Esse cargo um dia foi dela. Há mais de dez anos nos acostumamos nos revezar entre perder totalmente a cabeça e trazer a amiga para a realidade.

Meu celular está tocando. Não quero atender, estou de folga, mas é Juan. Ele sabe que estamos aqui, deve ser algo importante. Levanto-me do banco desconfortável, dando espaço para Ana se colocar de pé ao mesmo tempo que agradeço a paciência do barman de roupa alternativa com um gesto. Carrego meu suco comigo porque Ana iria derrubá-lo no instante que se jogasse no balcão, como acaba de fazer. Ela é a única bêbada entre nós.

— Você tem três minutos — digo para Juan, levando o celular ao ouvido enquanto caminho para o outro lado do bar, perto das portas dos banheiros e bem longe das pessoas que aproveitam cada gota de álcool como se fosse acabar amanhã. — Estou bêbada.

Um corpo, abaixo da Ponte Santa Ifigênia sem os dois olhos — Juan fala. Demorou menos de um minuto e já me convenceu. Encaro Rogério, que tem os dois metros parados ao lado de Ana e depois olho para a porta, o convidando. Vou caminhando para fora do bar.

Rogério parece um segurança, desde a vestimenta até a cara de quem gostaria de estar em qualquer outro lugar que não esse barulhento e exagerado. Ele não hesita em me seguir.

— E por que você está aí e não eu? — Pergunto assim que o vento congela meu rosto. Fumaça deixa meus lábios e Rogério me encara, curioso. Coloco no viva-voz quando estamos longe o suficiente das outras pessoas.

Porque ela só tinha desaparecido, até hoje — responde Juan, que trabalha com sequestros. — Rogério está com você? Ele está bêbado também? — Rogério tensiona as sobrancelhas, mais do que o normal, e faço uma careta querendo que ele tolere a minha mentira.

— Não estamos bêbados — falo então. Difícil respirar com a frente fria dessa noite. — Quem pegou o caso? Já chegou uma equipe da homicídios aí? — Juan demora algum tempo para responder.

Precisam estar aqui em quinze minutos — diz e não precisa repetir.

Depois de deixar Ana em casa, o que demorou menos do que pensei, eu e Rogério seguimos pelo centro de São Paulo até a cena do crime. O delegado Reinaldo Lima já estava lá, com outra equipe, mas considerando que sou sua melhor investigadora e Rogério é o seu melhor perito, ele não pensou duas vezes em ceder e nos deixar verificar.

— Quem achou o corpo? — Pergunto, Juan aponta para uma adolescente do outro lado da rua, apavorada, e que parece ter vocalista de banda indie. Não quero nem pensar no que ela estava fazendo aqui tão tarde.

— Não tocaram em nada? — Rogério busca garantir, colocando suas luvas. Juan nega com a cabeça e ele vai até o corpo, satisfeito.

Se colocassem Juan em uma sala para que apontassem sua profissão, todos ficariam em dúvida entre economista gerente de banco e advogado com escritório próprio, nunca um investigador. O topete castanho claro não está menos arrumado por ser madrugada e ele sobe os óculos com o antebraço direito quando se agacha ao lado de Rogério.

Juan e eu nos conhecemos há quatro anos e é esse o tempo que ele ocupa seu cargo no DHPP, mesmo que tenha trocado da divisão de homicídios para a de Proteção à Pessoa em pouco tempo. Rogério conheceu Juan na mesma época. Os dois nunca se estranharam, as personalidades deles se encaixam de forma impressionante. Mas, sabe, dois homens calados demais não fazem história, é por isso que sem próxima dos dois os fazem mais amigos do que seriam.

— É a garota do jornal — lamento, reconhecendo a loira morta do chão e me curvando apoiada nos joelhos para enxergá-la melhor. A lanterna de Juan quase me cega antes que ele aponte diretamente para Cinthia, a vítima. — Vai dar uma dor de cabeça enorme.

— Por que você acha que eu te liguei? — Juan ergue sua cabeça, balanço a minha em negativa. — Você nunca fica sem palavras.

— Ela se jogou? — pergunto, olhando para a ponte cima da minha cabeça. Recebo o silêncio de um perito intrigado. Rogério só afirma coisas das quais tem certeza. — Será que ela se jogou? — refaço, olhando para Rogério. Juan já está de pé. O perito mantém o silêncio e pressiono os lábios antes de o deixar fazer seu trabalho.

Juan me acompanha quando começo a caminhar pela cena do crime. Sei que Cinthia havia desaparecido dia 24 de junho de 2025, vista a última vez pelos seus pais antes de ir para um suposto intercâmbio na Argentina. A fortuna de sua família não reservou um segundo de descanso da mídia em cima da polícia e agora que ela está morta, sinto Juan colocar uma bomba em minhas mãos para que desarme em 5 segundos.

Não Deixe a Puta MorrerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora