Epílogo

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ANTES

CASSANDRA


     É algo novo. Mais do que novo. É inesperado, movediço e apavorante. Não. Ela não está com medo de um cliente novo e com gostos peculiares, muito menos de uma prova para o vestibular – nunca fez para saber como é. Um homem que se lembra ter visto umas três vezes na vida, cantando em um palco, está amarrando seus pés a uma cadeira. As mãos já estão para trás e ela não pode fazer nada.

Faz tempo que não tem controle da própria vida, mas senti-la sendo presa a um objeto duro nunca passou pela sua cabeça. Muitas coisas não passaram pela sua cabeça, e talvez por isso tanta merda lhe aconteceu, assim pensa. Às vezes acha que nem sabe mais o que é sentir medo. Cassandra pensa que talvez devesse sentir mais.

Mais medo de andar na rua.

Mais medo de entrar em quarto de motel com um desconhecido.

Mais medo das drogas, para nunca ter se viciado em uma.

Mais medo de acompanhar um garoto mais novo, com uma camiseta do Nirvana e unhas pintadas de preto até a parte de trás do palco.

O problema é que tudo isso se resume ao insano medo de morrer que acompanha as pessoas comuns da sociedade e não a ela. Cassandra perdeu o medo de morrer muito nova, com a mão de Cecília pressionando a sua com o máximo de força que uma criança consegue, como se aquilo fizesse uma barreira de proteção ao redor das três irmãs. Ele tentou voltar muitas vezes entre os seus dez e dezessete anos, dentro da casa dos pais adotivos, quando era corriqueira a sensação de que aquele homem daria um tiro na sua cabeça, mas aconteceu o completo contrário. Esse medo se foi por completo.

Cassandra não tem medo de mim.

Acredita, no fim, que sempre torceu pelo lado oposto ao que deveria. Nunca pensou em colocar um fim na própria vida, mas não temeu por circunstâncias onde eu estaria tão perto que meu hálito indomável bateria em seu rosto e gritaria em meus ouvidos: levanta, vadia, você ainda está viva. E ela me levantaria, de novo e de novo, até o instante que eu diria que não precisava mais. Esse dia ainda não chegou.

Sempre foi um jogo de baralho entre Cassandra e a vida. A vida pedia truco e a mulher abaixava as cartas, mostrando que ganhou mais uma vez.

Em quase nenhuma das vezes a trigêmea aumentava a aposta porque sabia que um dia poderia perder. Aconteceu a primeira vez, uma mulher que atendeu lhe convidou para um filme pornô que daria mais dígitos de uma vez na conta negativa do que teve em toda a sua história. Aumentou a aposta contra a vida. Pediu seis. Fizeram o filme. Não só um. A vida pediu nove. Foram quatro filmes em um ano e ela achava que ter desafiado a vida havia sido a melhor coisa que lhe aconteceu. Então, pediu doze, rodeada de homens com grana que a queriam, atolada ao meio de urubus cheirados de cocaína. Não demorou muito para entrar nessa. Notou que perdeu quando não conseguiu mais sair. Perdeu feio.

Eu a tentei, a pessoa sem medo de mim, e quase a levei algumas vezes, não sei ao certo por que não consegui. Talvez o namorado tenha um pacto com o demônio, pode explicar por queê lhe aturou tanto tempo, e Manoela, a melhora amiga de mesma vida, não fica para trás. Eram como escudos para um soldado vivo que havia abaixado as armas e aceitou que morreria em um campo batalha. Ela já tinha aceitado que viveu até demais para meu estilo de vida desafiador.

Então o segundo tapa veio. Não estava preparada. Foram vinte anos fugindo das sombras de um passado assassino. Em um momento as cinzas foram sopradas e lhe cegaram para algo que nunca foi capaz. A viu no bar que trabalhava, cheirando feito um aspirado de pó, dentro de um vestido de trezentos reais, com uma bolsa que valia mais que a sua vagina por cliente. Só que ela também tinha um escudo. Bonita, cheirosa e arrogante. Amanda sustentou o vício de Cassandra por alguns meses enquanto um vídeo seu torturava tanto sua mente quanto as das mulheres de rosto igual ao seu. O esgotamento mental não era por si e sim porque não queria que as garotas que deram certo descobrissem o quanto ela deu errado. Mas lá estava a Cassandra, a mais lascada das coitadas, a ovelha morta dentre as negras da família.

Ela mandou mensagem.

Cinthia ofereceu ajuda.

Cassandra ia aceitar, mas amiga não deixou, então foi pelo caminho que conhece. Aquele cheio de espinhos, que lhe desafia, e a faz pedir truco à vida. Mandou uma carta, assinada como o assassino do passado, torceu para dar certo e deu. Não do jeito que planejou, mas deu. Cecília falou com ela, finalmente, depois de dias das mensagens de ódio que enviou após a viralização do vídeo pornô. Era ela de novo.

Depois que Cinthia foi levada do orfanato, seis meses depois da morte da mãe, ficaram só ela e Cecília no orfanato. De luto por uma vida, uma mãe e uma irmã. Foram dois anos assim. Não se adaptou bem, nunca conseguiu se adequar a nenhum lugar que não a antiga casa alugada, que cheirava a mofo e café. Um dia, em fevereiro, debaixo de um sol quente e chão molhado, um carro vermelho chegou. De lá, brotou um casal bem arrumado e dois garotos. Quando voltaram um mês depois, Cecília foi com eles e nunca mais voltou. E ela guardou todos os poemas de Cecília, escritos em letra de forma e com muitos erros de português, em uma caixa de sapatos que carrega até hoje, não importa onde estiver, e relê sempre que sente sua falta.

Agora, Cecília está crescida. Tem as mãos amarradas na cama e lhe lança um olhar entristecido. Ela os reconhece porque só uma pessoa no mundo tem os olhos mais tristes que os de Cecília e precisaria se olhar no espelho para enxergá-la.

Quando Cinthia falou com Cassandra, cheia de um medo que ela mesma provocou, disse que a perdoava e a fez sentir culpa. Não é um sentimento comum em sua vida. Por mais erros que tenha cometido, sempre foram coisas destrutivas a si, nunca a alguém que importava a ela. Laerte pode até discordar do seu pensamento, mas nunca, em nenhum momento, planejou destruir o castelo que ele tentava construir. O maior problema entre eles é que Cassandra nunca foi uma princesa, herdeira, e com o futuro certo em mãos. Nunca foi a plebeia também. Aquela honesta e que, de alguma forma, vira princesa no final. Talvez, o máximo que tenha chegado de um conto de fadas foi ser o cavalo príncipe: bonito, mas esquecido.

Cecília a chamou para reiniciar a vida com ela. Uma mistura de felicidade e dor lhe fizeram chorar olhando as mensagens.

Como, ela, poderia recomeçar? Como reviver a ovelha morta?

Suas decisões não estavam apenas atreladas a uma carreira errada e a mediocridade, como as das irmãs. Seu mundo não tinha um reset. Nunca teve. Então Cinthia insistiu. Ela falou que tinha dinheiro, que também tinha problemas com drogas, e poderiam fugir um tempo do mundo para, pelo menos, tentar não morrer. Cassandra acreditou nela, e todo seu primeiro plano morreu às quatro e vinte dessa tarde.

Sentiu esperança, pela primeira vez na vida, e agora a assiste queimar em um fogo laranja e forte.

Um pano preenche sua boca e não consegue tirá-lo e nem respirar bem. O homem se levanta, não a olha, e coloca um pano sobre seus olhos. Há quanto tempo o vento de meu sussurro não a atinge com tanta delicadeza. Por alguns anos de jogo de truco, perdendo mais e mais depois de apostas erradas, eu e a vida discordamos.

Enquanto a vida pede truco a Cassandra; mais uma vez, eu sussurro: levanta, vadia, você ainda está viva.

Não Deixe a Puta MorrerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora