Capítulo 21, aquele do show

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     Sei que estou me metendo em algo ruim e nem precisava já ter chegado aqui em cima.

A primeira coisa que ocupou minha visão no instante que cheguei no local abafado e fedorento foi a estante construída de madeira com uma cortina cheia de flores vermelhas. Eu não sabia ainda, mas logo iria descobrir que atrás do plástico gentil de box de banheiro existiam potes de vidro muito velhos, sujos e amarelados. Todos eles estariam etiquetados com nomes escritos em letra cursiva e caneta preta. A mesma letra de uma carta que 20 anos atrás chegou até uma delegacia. Esses nomes seriam conhecidos por um desastre, seriam diversos nomes da morte. Cristina. Maria. Doraci. Luísa. Helena. Vanessa... Francisca. Dentro de cada um deles, exceto no último, estariam pares de olhos. Mantidos em álcool por tanto tempo. Conservados da mesma forma que dor da morte dessas mulheres se conservou latente na vida dos seus filhos.

Só que antes de procurar qualquer coisa, antes de encontrar os olhos, eu encontraria ela. Caída de lado em uma cadeira, com venda nos olhos e mordaça. Com os braços marcados pelo vício presos para trás e um peito que subia e descia como o de um cavalo de corrida que acaba de ganhar uma corrida. Cassandra não me via, mas eu a enxergava ao lado daquela poça seca e marrom de sangue mal limpo. Eu a via, pela primeira vez na vida, e ao mesmo tempo era como se já tivesse sentado em um restaurante com ela um dia e Cassandra tivesse me contado toda a sua história dramática e assustadora. Como se ela já tivesse me dito todas as vezes que quase morreu.

Então um som do outro lado do local iluminado fracamente por uma luz perto de Cassandra chamou minha atenção. Existia uma cama e nessa cama existia uma mulher amarrada. Com os olhos enormes e algo que não entendi se era mais medo ou alívio. Cecília não tinha mordaça, mas não soltava um piado. O barulho não foi proposital e quanto mais eu me aproximava dela, mais Cecília se espremia contra a cama como se eu fosse um bicho-papão buscando devorá-la. Era um medo tão genuíno que eu quase senti ele transcender seu corpo até o meu quando comecei a soltá-la.

— Sou policial — foi o que disse, tentando acalmá-la, e Cassandra também diminuiu seus miados cansados depois disso.

Os punhos de Cecília estavam marcados por um roxo intenso e os olhos fundos em olheiras pretas que a deixavam ainda mais magra do que estava. Não se parecia com as fotos que vi, porque felicidade era o sentimento mais distante dela.

Eu percebi quando a música parou, mas me distrai ajudando a erguer a cadeira de Cassandra e permitindo que ela me visse ao subir a sua venda. Não sabia se era o fim da quarta ou quinta música, mas no fundo pouco importava. Pouco importava o DNA ou qualquer outra coisa porque eu havia encontrado as garotas.

Procurei pelo meu telefone logo depois de soltar Cassandra, mas não o encontrei junto à minha arma no tornozelo. Ele caiu quando eu me agachei no chão e não tive tempo de notar antes de olhar o teto e depois subir.

Passei meus olhos de Cecília para Cassandra, depois parei eles sobre a mesa na qual a lamparina estava acesa. Nela, além de mais mancha de sangue, o vermelho oxidado havia se misturado com uma quantidade imensa de poeira branca. Cocaína. Muita cocaína.

— Vou pedir ajuda — revelei a elas, que então voltaram a demonstrar seu pavor. — Só vou pegar o meu celular e tudo vai ficar bem. Combinado? — Olhava Cassandra e Cecília lado a lado, elas se abraçaram na cama depois que ajudei Cassandra a chegar lá. — Confiem em mim. — Apoiei a mão contra meu peito, jurando não só com palavras.

Eu desci e descobri que tinha sido a quinta música.

Matheus já estava aqui, encarando a entrada do teto com cara de espanto. Não sei o que se passou em sua cabeça, mas em seus olhos só existia terror.

— Eu posso explicar — fala Matheus. Olha-me de cima abaixo, notando minha vestimenta, e depois para novamente em meus olhos, lotados de maquiagem, dando passos rápidos em minha direção.

— Você está preso — digo de maneira mais pausada do que deveria considerando que meu coração está martelando na cabeça.

— Eu não matei a Cinthia — declara rápido, com as duas mãos coladas no peito e os olhos começando a brilhar em lágrimas. — Foi ela, foi ela! A Cinthia se matou.

Ele esperava me desnortear. Provocar algum tipo de surpresa em mim, por menor que fosse. Queria me chocar, me comover. O problema é que eu já sabia que a Cinthia tinha arrancado os próprios olhos. Começou no carro, com a Ana. Alguém que sabia de medicina, mas não tinha precisão para o corte. É o que acontece quando se estuda medicina, mas se arranca seus próprios olhos. Quando reunimos as provas, eu notei o padrão.

Uma pessoa que se importava. Ela queria que nós encontrássemos as sequestradas. Uma pessoa que tinha motivos suficientes para odiar a Cassandra e conhecimento o suficiente para anestesiar os próprios olhos com cocaína e depois arrancá-los com a insanidade.

— Você tá sozinha? — pergunta Matheus, seu tom mudou.

— Seria uma burrice muito grande, até pra você, tentar alguma coisa — aconselho, e me agacho cautelosa até encontrar minha arma.

E ele é burro o suficiente sim, só que eu sou rápida. Matheus freou quando minha arma encostou abaixo de seu queixo e eu vi a veia pulsando em sua cabeça.

— Mãos na cabeça, ajoelha no chão — mando, ele obedece. Ainda com a arma empunhada, alcanço meu celular e início uma chama para o Juan.

O rosto de Matheus apresenta alguns tiques e seu nariz sobe duas vezes em uma careta.

— Como você convenceu a Cinthia a fazer isso? — pergunto, com uma mistura de nojo e curiosidade. — Por quê?

Ele me encarava com medo, seus olhos caídos estão molhados e ele balança a cabeça negativamente.

— Ela me convenceu — responde e depois se cala completamente.

Não Deixe a Puta MorrerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora