Capítulo 4, aquele do diário

710 105 29
                                    


     


     — "Não posso dizer que foi o pior dia da minha vida, mas chegou pertinho demais. Hoje assisti uma aula que me fez perceber o quanto sou infeliz. Nunca tinha notado. Nunca liguei em não poder ser eu mesma porque aprendi bem o que é certo e errado, o que posso ou não posso fazer. Só que não sou eu mesma nem quando fico sozinha. Não sou eu mesma nem escrevendo isso".

Bloqueio o celular. Esse foi só um trecho do diário da Cinthia, pegamos hoje no quarto dela depois de 3 dias que descobrimos sua existência. Os pais não sabiam da existência dele, por isso não falaram nada, mas Amanda sabia onde a Cinthia guardava. Disse que até pensou que poderia ter alguma coisa que ajudasse na investigação, mas ficou com medo de Cinthia ficar furiosa quando voltasse. Foi quase o mesmo pensamento do Laerte, então acho que vamos conhecer uma nova versão dessa menina. Uma que ela não queria que ninguém visse.

— Essas meninas ricas fazem muito drama — comenta Ana, com um jaleco e luvas brancas, ela olha atenta para o corpo frio à sua frente.

Ana é a médica legista do caso, mas não é Cinthia que está em sua maca. Ela me deixa ficar aqui dentro dessa sala bem iluminada quando preciso pensar. É mórbido, mas me sinto mais calma. O silêncio daqui é grande, considerando que a maioria dos frequentadores não pode mais falar.

— Pô, não me olha com essa cara — ela pede, não deixando de fazer seu trabalho na identificação do homem morto na sua mesa, anotando em sua prancheta. Estou sentada em uma cadeira do outro lado, bem abaixo do ar-condicionado.

— Era sua colega de profissão — argumento.

Ana solta uma risadinha e seu coque balança dentro da touca quando mexe a cabeça.

— Nem em mil anos — sussurra. — Ela provavelmente iria para uma especialidade bem oposta. Tem cara de dermatologista. Pela foto do jornal, claro, na minha maca ela é medonha demais para ter profissão. — Olha-me mais uma vez.

— Ana!

— Eu nunca tinha visto uma pessoa sem os dois olhos — argumenta. — A Cinthia só estava no mesmo curso que eu, não somos parecidas. Não estava falando do diário? É o melhor tipo de fofoca. Continua.

Volto a olhar meu celular, com o qual tirei fotos das partes que queria estudar.

— Ela estava bem desacreditada da vida, mas depois mudou um pouco — afirmo antes de voltar a ler. — "Nós nos beijamos pela primeira vez e foi a melhor sensação que já tive. Quase me sinto viva de novo, mas não é certo. Meus pais nunca aceitariam isso. Deus nunca aceitaria isso, mas tenho a impressão de que estava apaixonada por ela todos esses anos". E disse mais para a frente "Tentei evitar, mas não consigo. Acho que me sinto eu, finalmente, e isso não deveria parecer tão ruim. Cristo me guie e alivie dos meus pecados". Isso não é surpresa, o Laerte disse que ela não gostava de homens e entendo o porquê esconder isso dos pais. Ana, a cara de reprovação da mãe... Meu Deus, foi repugnante. Quase pior que a da minha.

Ana faz um bico em minha direção e começa a retirar as luvas antes de me chamar, com um gesto, para sair da sala. Pendura o jaleco ao lado da porta antes de ultrapassá-la. Estou com os braços cruzados e séria enquanto sigo ela pelos corredores de paredes brancas até a cantina, onde Ana nos serve café em copos plásticos. São 3h da madrugada. Ana fala:

— Tá, a Cinthia era apaixonada por outra mulher e os pais dela são muito preconceituosos e não sabiam. E daí? O que isso tem a ver com o caso? — Senta-se no sofá vinho com 30 anos de vida. — Esse tá bem longe de ser o maior "pecado" dela. — Faz aspas com apenas uma mão. — A toxicologia me mandou o laudo, se quer saber, para anexar. Cinthia tinha cocaína no sangue quando caiu.

Não Deixe a Puta MorrerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora