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Naquela tarde, a tarde fatal, estando ambos a sós, o que era raro e difícil, disse-lhe ele que em breve ia voltar para S. Paulo, levando consigo a imagem dela, e pedindo-lhe em câmbio, que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nele o seu magnífico par de olhos castanhos, com tanta irritação e dignidade, que o pobre rapaz ficou atônito e perplexo.

Imagina-se a angústia dele diante do silêncio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que se não imagina é a dor que o prostrou, - a dor e o espanto, - quando ela, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo:

- Esqueça-se disso.

- Pois quanto a mim, - disse Luís Alves ouvindo pela terceira vez a esquecia-me disso e ia curar-me em cima dos compêndios; Direito Romano e Filosofia, não conheço remédio melhor para tais achaques.

Estêvão não ouvia as palavras do amigo; estava então assentado na cama, com os cotovelos fincados nas pernas, e a cabeça metida nas mãos, parecendo que chorava. A princípio chorou em silêncio; mas não tardou que Luís Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saíam do peito, a puxar os cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d'alma tudo aquilo, tão lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e não houve remédio senão dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consolação veio a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco apouco, e as lágrimas estancaram, ao menos por algum tempo.

- Sei que tudo isto há de parecer-te ridículo, disse Estêvão sentando-se na cama; mas que queres tu? Eu vivia na persuasão de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo não entendo o que se passou hoje. Ou o que eu supunha ser amor, não passava talvez de passatempo ou zombaria...

- Talvez, talvez, interrompeu Luís Alves, compreendendo que o melhor meio de o curar do amor era meter-lhe em brios o amor-próprio.

Estêvão ficou alguns instantes pensativo.

- Não, não é possível, contestou ele. Tu não a conheces. É uma grave e nobre criatura, incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel.

- As mulheres...

- Já pensei se aquilo de hoje não seria uma maneira de experimentar-me, de ver até que ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Luís; eu nada afirmo; digo que pode ser. Não admira que ela fizesse esse cálculo, - um bom cálculo, nesse caso, todo filho do coração...

A imaginação de Estêvão desceu por este declívio de floridas conjecturas, e Luís Alves entendeu que era de bom aviso não espantar-lhe os cavalos. Ela foi, foi, foi por ali abaixo, rédea frouxa e riso nos lábios. Boa viagem! exclamou mentalmente o colega voltando a estirar-se no sofá. A viagem não foi longa, mas produziu efeito salutar no ânimo do namorado, adoçando-lhe as penas, circunstância que Luís Alves aproveitou para lhe falar de cem coisas alheias ao coração e diverti-lo do pensamento que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, porque fez com que o colega risse, a princípio de um riso amargo e dúbio, depois de um riso jovial e franco, incompatível com intuitos trágicos. Mas, ai triste! a dor dele era uma espécie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa às vezes, às vezes mais fraca, mas sempre infalível. O rapaz acertara de abrir uma página de Werther; leu meia dúzia de linhas, e o acesso voltou mais forte que nunca.

Luís Alves acudiu-lhe com as pastilhas da consolação; o acesso passou; nova palestra, novo riso, novo desespero, e assim se foram escoando as horas da noite, que o relógio da sala de jantar batia seca e regularmente, como a lembrar aos dois amigos que as nossas paixões não aceleram nem moderam o passo do tempo.

A aurora para os dois acadêmicos coincidiu com as badaladas do meio-dia, o que não. 

A Mão e a Luva (1874)Where stories live. Discover now