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Na noite do mesmo dia em que ficou assentado diferir a viagem para melhores tempos, achavam-se em casa da baronesa algumas pessoas de fora; Guiomar, sentada ao piano, acabava de tocar, a pedido da madrinha, um trecho de ópera da moda.

- Muito obrigada, disse ela a Luís Alves que se aproximara para dirigir-lhe um cumprimento. Está alegre! Parece que é a satisfação de me haver malogrado o maior desejo que eu tinha nesta ocasião.

- Não fui eu, disse ele, foi a epidemia.

- Sua aliada, parece.

- Tudo é aliado do homem que sabe querer, respondeu o advogado dando a esta frase um tanto enfática o maior tom de simplicidade que lhe podia sair dos lábios.

Guiomar curvou a cabeça e esteve alguns instantes a perpassar os dedos pelas teclas, enquanto Luís Alves, tirando de cima do piano outra música, dizia-lhe:

- Podia dar-nos este pedaço de Bellini, se quisesse.

Guiomar pegou maquinalmente na música e abriu-a na estante.

- Era então vontade sua? perguntou ela continuando o assunto interrompido do diálogo.

- Vontade certamente, porque era necessidade.

- Necessidade - tornou ela começando a tocar, menos por tocar que por encobrir a voz; mas necessidade por quê?

-Por uma razão muito simples, porque a amo.

A música estacou. Guiomar erguera-se de um salto. Mas nem o gesto da moça, nem a surpresa das outras pessoas perturbou o advogado; Luís Alves inclinou-se para o mocho, como a consertá-lo, e voltando-se para Guiomar, disse-lhe graciosamente:

-Pode sentar-se agora; está seguro.

Guiomar sentou-se outra vez muda, despeitada, a bater-lhe o coração como nunca lhe batera em nenhuma outra ocasião da vida, nem de susto, nem de cólera, nem... de amor, ia eu a dizer, sem que ela o houvesse sentido jamais. Não se demorou muito tempo ali; com a mão trêmula folheou a música que estava aberta na estante, deixou-a logo e levantou-se.

Nestes derradeiros movimentos ninguém reparou; e se alguém pudesse reparar em alguma coisa, a moça tomara a peito desvanecer todas as suspeitas. A primeira impressão fora profunda, mas Guiomar tinha força bastante para dominar-se e fechar todo o sentimento no coração.

O que se passou depois, quando, livre de olhos estranhos, pôde entregar-se a si mesma, isso ninguém soube, a não serem as paredes mudas do quarto, ou o raio de lua coado pelo tecido raro das cortinas das janelas, como a espreitar aquela alma faminta de luz. Soube-o, talvez, o seu espelho, quando no dia seguinte lhe refletiu o rosto desfeito e os olhos quebrados. Se foi a meditação noturna que os amoleceu e apagou, não o perguntou ele, naturalmente porque o sabia; mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos, pediam outro rosto em que caíssem melhor. O de Guiomar queria-os como eles eram, severos, firmes e brilhantes.

A baronesa também não deixou de ver que a afilhada não acordara com o mesmo ar do costume; achou-a taciturna e distraída.

- Eu, madrinha? perguntou Guiomar simulando um sorriso de admiração.

- Será engano de meus olhos.

- Não é outra coisa; estou como sempre, como ontem, como amanhã. Passei a noite um pouco mal, é verdade; mas o que tive desapareceu inteiramente. A prova...

Guiomar parou neste ponto, chegou-se à madrinha e deu-lhe um beijo.

- A prova, continuou ela, é que ainda hoje me acha bonita, não é?

- Criança! respondeu a baronesa, dando-lhe uma pancadinha na face.

A tranqüilidade da moça era simulada; apenas a madrinha voltou as costas, cobriu-se-lhe o rosto com o mesmo véu. Ela aprendera desde criança a disfarçar as suas preocupações. 

A Mão e a Luva (1874)Where stories live. Discover now