29

19 1 0
                                    

a razão, as tendências da alma e os cálculos da vida.

Excluído o receio, voltou-lhe o riso, aquele riso interior, que é o mais involuntário e cruel, e também o menos arriscado que a gente pode dar às fatuidades humanas. Não podia ser tão desprezível assim o amor de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades boas, e que enfim era também distinto, ainda que a sua distinção primasse antes por um estilo rendilhado e complicado, que não é o melhor. Guiomar via tudo isso, e por outro lado, não podia obstar que ele a amasse; nem por isso achava menos temerária aquela confissão.

A moça refletia também na posição especial que tinha naquela casa o sobrinho da baronesa; via-se obrigada à presença dele, e talvez à luta, porque o pretendente não recuaria do primeiro golpe. Não havia tais receios da parte de Estêvão; ela reconhecia que a paixão deste era ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas comparava as índoles dos dois homens, e se ambos lhe pareciam de fraca compleição moral, nem por isso desconhecia que ao bacharel faltava certa presunção que distinguia o outro, e com a qual teria talvez de pelejar.

Quando ela fez esta comparação entre os dois homens, ficaram-lhe os olhos um pouco mais moles e quebrados, obra de três minutos apenas, mas três minutos que, se Estêvão soubera deles, trocaria por eles o resto de toda a vida. E contudo, não era amor nem saudade; alguma simpatia, sim, ainda que leve e sem conseqüência; mas, sobretudo, era pena de o não poder amar

- ou ainda melhor - era lástima de que tal coração não fora casado a outro espírito.

Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também, soltando o pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos navegamos alguma vez na vida, quando nos cansa a terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação dela porém não era doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. Nada disso era nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra.

Volveu enfim e os olhos caíram-lhe na carta. A realidade presente não se lhe podia mostrar de pior modo. Guiomar ergueu-se irritada, lançou mão do papel e machucou-o febrilmente; ia talvez rasgá-lo, quando ouviu bater de manso à porta.

-Quem é? perguntou.

-Sou eu, respondeu a voz de Mrs. Oswald.

A moça foi abrir a porta; a inglesa entrou, trajada de dormir, e um vivo espanto nos olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns segundos. Guiomar assustada perguntou:

- Que é? aconteceu alguma coisa a minha madrinha?

- Longe vá o agouro! exclamou a inglesa. Não lhe aconteceu nada; a senhora baronesa dorme naturalmente a sono solto. Venho porque do meu quarto pareceu-me ouvir rumores de passos aqui, e depois vi luz. Pensei que tivesse algum incômodo. Mas, pelo que vejo, continuou a inglesa deitando os olhos para a mesinha em que pousava o livro aberto - pelo que vejo ainda não acabou de ler o seu romance...

- Não li ainda uma linha, depois que me recolhi, respondeu Guiomar cravando os olhos no rosto da inglesa, como tomada de um pensamento súbito.

- Deveras!

- Li outra coisa, continuou a moça; li este papel.

Mrs. Oswald inclinou-se para ler também o papel, que aliás adivinhou qual fosse; Guiomar atirou-o sobre a mesa.

- Não precisa, disse ela; é uma declaração amorosa.

- De quem? perguntou a inglesa abrindo uns olhos espantados e obedientes.

- Leia o nome.

Mrs. Oswald leu a assinatura da carta, que a moça de novo lhe apresentava.

- Naturalmente, continuou Guiomar, há nisto obra sua... 

A Mão e a Luva (1874)Where stories live. Discover now