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Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali não só ele a adoraria de joelhos, mas até poderia supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele próprio.

Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar não tinha um coração tão mau, que lhe não doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquela preocupação, a verdade é que ela durou muito tempo.

Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para contemplar a noite - o luar que batia nas águas, o céu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais desconsoladora lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ânsias, paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade, impassível e muda como a morte.

Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe importava - ou quem lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do presente e do futuro e -

tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho enchiam - tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.

A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acordá-la, na forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo à dedicação filial de que já dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o passeio foi diferente do dos outros dias.

Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saíram a uma visita. A baronesa ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou daí a pouco.

A baronesa não perdeu tempo em circunlóquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o diretamente.

- Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse, que tu gostas de Guiomar.

Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingênuo que corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz. Puxou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singularmente:

- Não me atrevia a falar-lhe destas coisas...

- Por que não? - interrompeu a baronesa; são assuntos que se podem tratar entre mim e ti, sem desar para nenhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald?

- É.

- Amas deveras, ou...

- Deveras. Recuaria, se visse que uma aliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa família; mas, posto que ela seja...

- Guiomar é minha filha, apressou-se a dizer a baronesa.

- Justamente; não pode haver melhor título.

- Tem ainda outro, continuou a baronesa; é uma alma angélica e pura. Henriqueta não teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espírito superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equívoco do nascimento. Finalmente é de uma beleza pouco comum...

- Rara, titia, pode dizer que é de uma beleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma coisa, que não era a gravidade de costume.

- Já vês, prosseguiu a baronesa, que ela possui todos os direitos ao amor e à mão de um homem como tu. 

A Mão e a Luva (1874)Where stories live. Discover now