- Chapitre neuf -

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03/10/2014

Realidade.

É bem difícil e doloroso aceitar nossa vida. Aceitar tudo, já que não tem como mudar...

Deslizava o pincel pela tela e aquilo me acalmava. Sempre gostei de desenhar, mas é minha primeira vez pintando algo. Era um lírio, um lírio azul.

A sala de artes estava em total quietude, ouvia-se apenas a respiração das garotas e, às vezes, o barulho do vento. Aquele silêncio era o que eu procurava, era bom sentir a concentração que emanava da sala.

Existe, de fato, várias formas de arte, várias formas de demonstrar tudo que você sente, porque o sentimento é uma arte e devemos respeitá-lo e colocá-lo para fora de alguma maneira. Geralmente, gosto de fazer isso escutando música ou tocando flauta. Devo admitir que gostei de ter mais uma maneira para me expressar, apesar de ser um pouco difícil fazer com que a pintura fique do jeito que eu quero que saia.

Ao contrário de mim, vejo muitas meninas com telas em branco à sua frente sem saber o pintar ou como pintar. Outras fizeram desenhos não tão bonitos e estão chateadas. Agradeço por não estar no lugar delas.

A professora preferiu não ficar andando pela sala e analisando nossas pinturas, ao invés disso, ela está pintando sua própria obra junto a nós.

...
04/10/2014

Tive jantar há não muito tempo mas, devo confessar, ainda estou com fome. Todos estão dormindo e tudo está escuro, tenho medo de acordar alguém.

Odeio sentir fome à noite.

Pego minha garrafa de água - para não precisar andar a noite inteira até a cozinha, eu encho minha garrafa com água toda vez antes de dormir - e tomo um pouco. Queria que fosse fome psicológica, mas é real. Ouço meu estômago roncar e sinto aquele vazio na barriga.

É por isso que odeio sentir fome em geral.

Não faria mal dar uma ida até a cozinha e roubar alguns bolinhos. Não, com certeza não sentiriam a falta deles.

Abro a porta e faço o máximo de silêncio possível. Gostaria de estar em casa para não me sentir tão desconfortável.

Desço as escadas e controlo o grito quase dado por mim ao ouvir o alto som do ranger da madeira. Isso acontece mais uma vez quando enfim corro para cozinha.

O cheiro de goiaba paira no lugar. Controlo-me para não pegar um das três que tinham contidas num cesto.

Vou até o armário, onde deduzi que estaria o bolinho de chocolate. Minha intuição sempre acerta. Pego o pacote e vou para porta.

Saio tentando não fazer barulho com os pés e com o pacotinho do bolo pequeno.

Quando chego ao meu quarto, solto toda respiração prendida no meu pulmão. Era um alívio ver que havia conseguido sem ninguém perceber. Ou, ao menos, não perceber ainda

Fecho a porta devagar e deito-me na cama. Cubro todo meu corpo com o cobertor e abro o pacote. A primeira mordida me faz com que me sinto uma esfomeada, já que só ela não seria suficiente.

Em pouco tempo, a minha felicidade acabou, pois o bolinho também acabou.

Escondo a embalagem embaixo do travesseiro e volto a dormir com menos fome.

...

Acordo com a notícia que roubei o último bolinho que, inclusive, era da diretora. Claro que ninguém sabia quem fez essa barbaridade, mas logo iriam descobrir.

Ela não parecia estar brava, mas queria saber quem foi. Às vezes tenho medo de que, apesar de não aparentar, ela esteja brava. Se for esse o caso, acho que ela estaria sendo muito infantil. Não gostaria tivesse meu último bolinho roubado e comido por alguém, mas não ficaria brava por isso.

Enfim, cada um com sua própria personalidade...

Mas, de verdade, tudo que eu pensei sobre ela se isso for o que ela sente, iria por água abaixo. Gostei muito dela, mas isso mudaria minha visão sobre ela.

- Eu apenas quero saber quem foi - sua voz é bem firme. - Não irei xingar, mas sim ensinar que isso não se faz. Não é certo roubar nem comer algo que não é seu sem a permissão do dono.

Penso em como pediria desculpas para ela. Não quero ser dada como ladra ou esfomeada, mas também não quero ser desonesta. Quero explicar que tive motivo para isso.

- Senhora Gian - estico meu braço ao alto. - Posso falar com a senhora?

Seus olhos se fecham um pouco, analisando-me.

- Certo, venha aqui. - sua mão mostra onde vamos conversar.

Assim que me aproximo, noto seu olhar de desconfiança ao cruzar os braços.

- Fui eu.

- É mesmo? Por que?

- Sim, por razões...hormonais - digo, e não é mentira.

- Está naqueles dias? - agora é notável que ela parece mais tranquila.

- Isso mesmo, senti uma fome tão absurda e não me contive. Desculpe-me - abaixo a cabeça ao falar.

Ouço sua risada baixa e isso, de alguma forma, me descontrai. Levanto a cabeça e vejo seu sorriso fechado.

- Está tudo bem, já fui como você e entendo-te perfeitamente.

Dou um suspiro rápido e sorrio junto a ela. É bom saber que ela me entende, que alguém me entende.

Quando fui acordada por Dinah com essa notícia, fiquei aflita por medo de ser xingada na frente de todos. Mas aí, quando fui ao banheiro, descobri o porquê daquilo ter acontecido. Ao mesmo tempo em que fiquei aliviada, continuei aflita. Depois que "virei moça", comecei a comer mais sempre que estava na TPM. Isso é algo super normal, mas não para meu pai. Ele me xingava todas as vezes em que fazia isso, chamando-me de morta fome ou buraco sem fundo. Ele, obviamente, não me entendia e deve continuar sem entender, então, fiquei feliz ao saber que a diretora me entende.

Voltamos para sala onde estávamos.

- É bom saber que está se adaptando, senhorita Vasconcelos. - sorrio ao ver que ela não revelou para ninguém aquilo, mesmo que não me incomodasse - Bom, enquanto eu conversava com a Antonietta, lembrei-me da noite passada. Eu mesma comi o bolinho, então não se preocupem. - ela diz e se vira para sair enquanto conversa com Dinah.

Aos poucos, vou percebendo que aqui é um ótimo lugar com pessoas que são, verdadeiramente, minha família.

...

At last, my love has come along
My lonely days are over
And life is like a song

Ooh yeah, yeah

At last, the skies above are blue
My heart was wrapped up in clover
The night I looked at you

I found a dream, that I could speak to
A dream that I can call my own
I found a thrill to rest my cheek to
A thrill that I have never known

- At last - Etta James.

Mil músicas para AntoniettaWhere stories live. Discover now