Primeiro beijo da discórdia

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O ano era 2004. O local era uma rua pouco movimentada em uma bairro de classe média bastante residencial. Duas casas haviam sido construídas lá: uma de dois andares branca e outra de dois andares de tijolos. Uma pertencia à família Belchior, enquanto a outra era dos Castello, e todo mundo que morava por perto sabia que ambas as famílias eram muito próximas. No entanto, os dois adolescentes que viviam ali não podiam ser mais diferentes...

Vicente Castello estava concentrado escrevendo seu trabalho de biologia em seu Windows XP quando bateu as mãos na escrivaninha, levantou irritado e fechou o vidro da janela com força. Todos os dias que queria estudar era a mesma coisa, seu vizinho ia para a garagem e começava a ensaiar aquelas músicas barulhentas que ele não podia odiar mais. Qualquer coisa que fosse My Chemical Romance, Blink 182 ou Green Day passava longe de sua playlist. Ninguém era mais pop do que ele, seu espelho tinha fotos de Britney Spears e Madonna e aquelas eram as músicas que cantava no chuveiro todas as noites.

O nome de seu vizinho era Jonathan Belchior e apesar de terem a mesma idade — os dois tinham dezesseis, mas o outro era mais velho por apenas alguns meses — eram as pessoas mais diferentes do mundo, para a tristeza de seus pais. Na adolescência, eles tinham sido colegas de universidade, foi assim que se aproximaram e mantiveram a amizade até mesmo depois de seus casamentos, quando decidiram ser vizinhos. Como ambas as famílias tiveram filhos ao mesmo tempo, era natural que pensassem que seus garotinhos seguiriam o mesmo caminho do que o deles, mas isso não aconteceu. Jonathan era a criança mais tímida e isolada da rua, não gostava de brincar com os outros e passava o tempo todo sozinho no fliperama — onde já tinha zerado todas as máquinas. Já Vicente era famoso no bairro, as velhinhas o adoravam por sua educação e gentileza, todas as crianças queriam brincar com ele na pracinha e soltar pipa no parque da cidade. Ele até tentou uma amizade com o vizinho algumas vezes, porém todas essas tentativas foram falhas e assim eles apenas cresceram afastados.

Isso até o dia que mudou seus destinos para sempre.

Aos oito anos, Jonathan adoeceu. Ele sempre foi uma criança frágil desde o nascimento, mas as coisas pioraram muito com o passar dos anos. Como médico, seu pai ficou apavorado, sabia que os dois rins do filho iriam parar de funcionar em algum momento e ele precisava de uma doação. Tanto ele quanto a esposa estavam prontos para doar um de seus órgãos e salvar a vida do filho, porém em uma mudança drástica de acontecimentos, nenhum dos dois era um doador compatível. Depois de testar vários familiares e até mesmo seus amigos vizinhos, uma realidade que ninguém esperava veio à tona: dentre todos testados, Vicente era o doador mais compatível.

Aquilo foi debate entre as famílias por semanas, os Castello estavam com medo de submeter o filho a uma cirurgia como essa, especialmente uma que era ilegal — um menor de idade vivo não pode ser doador de órgãos. Assim, o senhor Belchior iria fazer a cirurgia de forma clandestina, ele estava tão desesperado para salvar seu filho que implorou aos prantos e de joelhos na frente dos amigos, até que por fim eles cederam. Naquela época, Vicente era tão jovem que não entendia o que estava acontecendo, ele apenas era uma criança bondosa e quando ouviu que poderia salvar a vida de alguém — mesmo que fosse aquele vizinho com o qual não tinha intimidade — ele disse que iria fazer. Assim, aos oito anos de idade, ele doou um de seus rins a Jonathan e salvou sua vida.

Foi apenas alguns anos depois que se deu conta do que tinha feito e começou a se sentir mal. Ele tinha percebido que foi manipulado por ambas as famílias e era jovem demais para tomar uma decisão definitiva como essa, agora tinha perdido algo que jamais poderia recuperar.

Do outro lado, Jonathan não se sentia muito diferente. Ele nunca tinha gostado daquele vizinho, não entendia por que ele vivia sorrindo, como tinha facilidade para fazer amigos e por que todo mundo andava gravitando ao seu redor. Muitas vezes o observou pela janela enquanto ele liderava as brincadeiras com todas as crianças da rua andando ao seu entorno. Ele não sabia como fazer amigos, era atrapalhado com as palavras e se sentia mais confortável sozinho, por isso se isolava de todo mundo. Na época em que ficou doente, não teve muitos pensamentos sobre, apenas tinha aceitado isso como algo que não poderia mudar. Seus pais não lhe disseram quem iria doar aquele rim, ele descobriu mais tarde quando uma parte de Vicente já estava dentro dele. O sentimento na época foi estranho e perdurava em seu coração até hoje, era como se fosse viver o resto da vida em dívida com aquela pessoa, uma que ele jamais poderia pagar.

Primeiro amor na casa ao ladoWhere stories live. Discover now