18 de Junho de 1990 (Segunda-Feira)

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A rotina deste dia foi idêntica àquela do jogo frente à União Soviética. Saída de Trigoria pelas dez da manhã, pequeno estágio no mesmo centro desportivo de Fuorigrotta. Agora, gostava de dizer o nome do bairro. Fuorigrotta! Soava-me a algo solene e mágico, fora da gruta, lugar encantado, de bruxas e de mistérios. O centro estava, como dias antes, cercado por adeptos fanáticos e barulhentos, que demonstravam enfaticamente o seu apoio incondicional à equipa nacional. Desta vez havia mais gente. Aos argentinos juntaram-se os napolitanos que berravam sem cessar o nome de Diego, ao ponto de me fazer doer a cabeça. Perdi a fome e comi mal. Tudo bem. Se enchesse o estômago iria acabar por vomitar.

Resolvi afastar-me de todos, até dos jogadores, para conseguir manter a calma que me fugia como areia por entre os dedos. Andava inquieta de um lado para o outro e não havia nada que me pudesse sossegar. Acordara com um pressentimento qualquer que não era capaz de definir, mas que me enchia de medo. Se a Argentina fosse afastada do mundial, iria com eles no avião para fugir da vergonha e da melancolia de ver um sonho ceifado daquela maneira – primeiro aquele distanciamento da Bélgica, depois a eliminação da Argentina – e haveria de desejar, como Bilardo, que acontecesse uma tragédia para evitar um futuro sem aquele embaraço, sem aquela pena.

Adivinhava um jogo terrível para o meu coração, para a minha alma. No início da tarde já me custava a respirar – a caixa torácica comprimida num aperto, os pulmões murchos, a garganta apertada que procurava por ar. Iria sofrer horrores até que o árbitro, que seria português, desse por concluídos os noventa minutos regulamentares. Estava um pouco mais confiante porque trouxera a boneca mexicana, mas dava por mim a contemplá-la com uma expressão aflita, esgazeada, a perceber como era fútil e louco depender de um brinquedo vulgar feito de trapos. Acreditava, ou queria firmemente acreditar, numa vitória da Argentina. Lutava para que a dúvida não se instalasse no meu coração, para que os deuses não detetassem essa pequena mancha e me apontassem a traição, se aproveitassem dela e fizessem tudo ao contrário do que eu queria e desejava, acusando-me depois de ter sido a primeira a hesitar. Na minha alma eu teria de ser imaculadamente pura, sem qualquer vestígio vacilante da minha crença na alviceleste.

Era difícil. Comigo tinha sempre um lado racional, frio, analítico. Diego estava lesionado e a Argentina sem Diego ver-se-ia em grandes dificuldades para mostrar o seu jogo que, até à data, não tinha convencido ninguém. A imprensa não se alimentava apenas dos zunzuns sobre o tornozelo de Maradona. Vinha recorrentemente a tecer críticas duríssimas à equipa orientada por Carlos Bilardo. Já tinha notado como a leitura dos jornais deixava toda a gente maldisposta.

Nápoles parecia-me mais agitada do que na semana passada. Nas ruelas e nos becos penduravam-se bandeiras azuis e brancas, do clube local e do país das Pampas, ao lado de faixas que louvavam Diego com palavras intensas de amor, carinho e incentivo. Vi tudo isso à saída para o estádio San Paolo. Por esta altura, já tinha a boneca na mão que apertava com a ferocidade insana de uma devota fanática que obriga os deuses a se vergarem às suas preces.

Eu acredito! A Argentina vai ganhar! Eu acredito! Diego vai vencer!

Repetia estas palavras como numa prece.

Deram-me o cartão habitual e o bilhete para que fosse para o lugar designado nas bancadas que servia os convidados da federação. Nunca me deixavam ficar com o cartão no fim dos jogos e temia que se esquecessem de mim, que me obrigassem a sair do estádio ou a ficar num qualquer local dos corredores internos de onde seria impossível seguir o jogo. Arranquei o cartão da mão de Cristóbal. Era ele, daquela vez, o encarregado da distribuição dos passes.

– Calma, Cristina! Estás zangada comigo?

– Porque é que não posso ficar com o cartão? Vou fugir, por acaso? Vou vendê-lo no mercado negro, por acaso? Eu moro com a seleção da Argentina!

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