Um novo dia, um novo mês, o mesmo mundial.
Despertei com a sensação estranha de estar entre dimensões, entalada num ângulo cego e escondida do mundo normal. Tudo o que fizesse ou dissesse seria sumariamente ignorado, porque me tornara incorpórea e invisível. Não fazia qualquer diferença existir ou não existir. Assustei-me com a minha vulnerabilidade – bastava um sopro e acabava desfeita em moléculas. Por isso, fiquei no quarto e pedi que me servissem aí o pequeno-almoço. Trouxeram-me café com leite, tostas, manteiga, doce de fruta, pasta de chocolate com avelã, dois bolinhos e requeijão. Comi com apetite.
Liguei a televisão e conferi atentamente as imagens dos jogos de ontem. Aquele de Itália era o mais destacado, mas consegui milagrosamente ver um resumo alargado do embate entre argentinos e jugoslavos. Analisando tudo friamente e sem a pressão do desconhecimento do resultado, a Argentina tivera muita sorte ao ser apurada para as meias-finais. O jogo em Florença, num estádio parcialmente cheio, o Comunale levara cerca de trinta mil pessoas e grande parte das bancadas mostrava-se desoladamente despida, fora monótono e inconsequente, aborrecido e arrastado. As jogadas não tinham seguimento, propósito, contundência, e aqueles longos cento e vinte minutos de um futebol embaraçosamente pobre foram esquecíveis, à exceção da expulsão de um jugoslavo na primeira parte por causa de uma falta feia sobre Maradona – a Argentina campeã jogara grande parte do tempo contra dez e não fora capaz de se impor – as oportunidades falhadas pela Jugoslávia, duas delas flagrantes, e o golo de Jorge Burruchaga na segunda metade do prolongamento que foi muito bem anulado pelo árbitro suíço por ter sido marcado com a mão. A história da partida, como enfatizava o jornalista que assinava a reportagem num desdém azedo, bastante típico dos italianos que detestavam a Argentina e principalmente Diego, resumia-se basicamente aos penáltis. Isso devia-se à reviravolta que favoreceu inesperadamente os sul-americanos, contra o rumo do jogo, e ao pontapé falhado de Maradona que fizera Ivkovic ganhar outra nota de cem dólares. Afinal, existira uma segunda aposta entre os dois.
Quando não marcou aquela grande penalidade que asseguraria praticamente o apuramento da sua seleção, Maradona sentiu-se morto. Foi essa a palavra que o jornalista italiano empregou. Morto. Acabado. Rei destronado, finalmente. Ao passar pelo guarda-redes Goycochea, este assegurou-lhe, "não te preocupes, monstro. Vou defender dois penáltis." E cumpriu a promessa! No fim, Maradona ressuscitou e fez a festa. O rei não abdicou do seu trono, nem entregou a sua coroa, nem se desfez do manto e do cetro. Sorri, orgulhosa.
A Jugoslávia saía do torneio com honra, com brio. Tinham, na sua equipa, grandes jogadores como Prosinecki, Vujovic, Savicevic, Hadzibejic, Susic ou Stojkovic. Mas a Argentina esgrimira outros argumentos e tivera, sobretudo, a inspiração soberba de contar com Diego Maradona em campo. Mesmo lesionado, o craque não desistia e não admitia ficar no banco. Entrava e jogava os noventa, os cento e vinte minutos, marcava penáltis, o que fosse exigido. Segundo Bilardo, Diego mal conseguia andar, o tornozelo esquerdo estava completamente desfeito, mas mantinha-se a titular com uma coragem e uma capacidade de sofrimento nunca vistas. Agoniou-me saber disso.
As equipas do Leste europeu mostraram-se temíveis no mundial. Restava ainda a Checoslováquia que acabaria eliminada no final da tarde, depois de lutar bravamente contra uma Alemanha invicta que só haveria de lhes ganhar pelo mesmo um a zero com que a grande favorita Itália mandara a República da Irlanda para casa. Provavelmente, os alemães estariam a pensar na união monetária que tinha entrado em vigor naquele início de julho e que juntava ainda mais a República Democrática Alemã e a República Federal Alemã, um passo gigantesco para a reunificação do país que aconteceria em novembro deste ano. Provavelmente... E, na noite, seria a vez de a Inglaterra apurar-se para as meias-finais, eliminando os bravos leões africanos, os Camarões, mas apenas no prolongamento, com um três a dois arrancado a ferros.
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O Outro Lado do Verão
Historical FictionUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...