29 de Junho de 1990 (Sexta-Feira)

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O jogador argentino Oscar Garré segurava-me na mão com força. Não olhava para mim. Olhava para o relvado verde, quase branco por ação dos inclementes raios solares. Fazia muito calor, mais de trinta graus centígrados. O suor escorria-me pelo meio das costas. Despejei um saco plástico com água fria pela cabeça que rasguei com os dentes, pois tinha uma das mãos ocupada. Porque é que estava de mão dada ao jogador... não sabia, mas desconfiava de que, daquela maneira, ele se assegurava que eu não iria fugir. A precaução era desnecessária, porém. Dali eu não sairia. Estava desde o princípio, ficaria até ao fim.

Estava quase a terminar... faltavam dois minutos. Jorge Burruchaga arrancou-me de Oscar Garré, abraçou-me e sussurrou-me, "o golo é para ti". Beijou-me a boca e sorriu-me. Diego rosnou "tira as mãozinhas", e depois raptou-me dos braços de Burruchaga. Rodopiámos os dois, suados e felizes, aos gritos e a chorar, no centro do campo. O jogo tinha, enfim, terminado, e havia muita confusão no relvado. Diego empurrou a taça de ouro da FIFA para mim e segurei-a precariamente. O meu corpo tremia muito, de emoção e de fraqueza. Tinha fome, sede, estava desidratada, exausta e sonolenta, mas a alegria que sentia disfarçava todos os defeitos e preenchia qualquer lacuna física.

Olhei finalmente em meu redor e reconheci o caldeirão infernal do Azteca 2000. Pestanejei furiosamente, esfreguei os olhos. Tinha de ter a certeza... Ao reabri-los comprovei que estava mesmo no Azteca 2000. Os argentinos campeões juntavam-se num grupo compacto envolvido pelos seus adeptos. Havia quem puxasse uma faixa interminável azul e branca, as cores da bandeira da Argentina, e corria relva afora, aos gritos, a largar lágrimas que me salpicavam. Às tantas, não tinha a certeza se as gotas que me caíam sobre os lábios e que eu lambia, entre soluços, saíam dos meus olhos ou de olhos alheios.

Jean-Marie abraçou-me a cintura e levou-me para a sombra. Não sei que lugar foi ele encontrar que podia proporcionar esse recanto mais fresco num campo de jogo aberto e que se exibia abandonado ao sol mexicano, mas agradeci-lhe mentalmente por aqueles minutos longe daquele calor rutilante. Ao mostrar-me, sorridente, a medalha do terceiro lugar, desconfiei que alguma coisa não estava bem. Ele usava-a ao pescoço, presa por uma fita vermelha, branca e verde, as cores da bandeira do México, e repetia-me que eu era extraordinária por ter dado tanta sorte à Bélgica. Apontei Diego que elevava a taça dourada acima da cabeça e disse-lhe que tinha sido a Argentina a ganhar, não a Bélgica. Jean-Marie manteve o bom-humor. Riu-se alto, numa daquelas suas gargalhadas contagiantes, beliscou-me amigavelmente a bochecha e chamou-me "tontinha, sua tontinha. Não é o jogo de hoje. Foi ontem!".

Ontem tinha estado no churrasco, a beber sangria, com a cabeça leve e muito feliz. Esse convívio fazia parte dos rituais e tinha dado resultado, pelos vistos. Voltei a pestanejar e a memória embrulhou-se no tempo real, ou seja, eu estava outra vez a viver o churrasco. Comia pedaços de carne malpassada que Jorge Burruchaga me dava à boca, Tata Brown queria que eu bebesse os copos que me enchia e Valdano conversava com Diego para o acalmar, que repetia, a reprimir a raiva, "tira as mãozinhas".

Eventualmente Diego conseguiu ir buscar-me e começámos a dançar. O homem mexicano e a sua guitarra cantavam para nós. Desta vez estávamos no meio da praça, não nas traseiras do arraial que celebrava a véspera do São Pedro. Perguntei a Diego se não se importava de ser reconhecido. Encolhia os ombros, dizia estar habituado, e acrescentava, com uma pequena nota de tristeza, que aquela seria a última vez que podia dançar no meio do povo sem que lhe exigissem demasiado.

"O México foi uma bênção, porque fui campeão, e também uma maldição, porque fui campeão. A minha vida mudou para sempre. Sou tão amado, sou tão odiado, sou tudo e não sou nada. No meio... precisamente no meio desses extremos... o que sobra, Tina?".

O Outro Lado do VerãoWhere stories live. Discover now