30 de Junho de 1990 (Sábado)

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Fiz as malas, mesmo tendo a viagem de avião marcada apenas para domingo. Voo direto de Roma para Lisboa. Uma vez chegada à capital portuguesa apanharia um autocarro para o Algarve e estaria em casa a tempo do jantar. Esperava uma receção normal. A minha mãe haveria de me perguntar, já estás em casa?, eu haveria de responder, sim, o intercâmbio cultural terminou, o meu irmão quereria saber se tinha trazido presentes – podia comprar-lhe qualquer coisa na loja franca do aeroporto relacionada com o mundial – o meu pai olhar-me-ia com aquela expressão entre a curiosidade e a indiferença, mas não faria qualquer pergunta, bastava que a minha mãe aprovasse a minha chegada como fazendo parte do padrão que teriam, algures, estabelecido para aqueles dias em que eu estivera fora de casa.

Em breve, estaria integrada na rotina habitual, junto da minha família, e admitia que essa perspetiva não era inteiramente agradável. Sentei-me na cama a segurar nas alças da mochila que ficara pesada com o meu caderno e o livro de matemática.

Os fins sempre me confundiram e entristeceram. Depois da conversa que tivera com Jorge Valdano, olhava-me como um monstro insensível por estar disposta a largar tudo com uma frieza implacável, sem dar-me uma hipótese de recuo e, de facto, parecia-me abominável. Parecia-me injusto. Não gostava do fim e, naquele caso, impusera-o a mim mesma e aos outros.

Para me sentir melhor com aquela decisão imaginava que haveria de encontrar a seleção da Argentina no aeroporto, tal como tinha acontecido no México, fazia hoje quatro anos exatos – uma forma de o calendário zombar de mim. No aeroporto, iríamos despedir-nos uma segunda vez. Ou talvez uma primeira. Ainda não sabia como iria ser quando fosse a Trigoria no domingo de manhã. Passada a euforia de ter visto Jorge Valdano, a minha insegurança crónica levou a melhor. Uma série de questões, de indecisões e de preocupações tomaram conta de mim e levei a pensar, até adormecer na noite anterior, sobre o que me podia acontecer. Os cenários eram tão diversos, com momentos tão extremos e elaborados em que me via invariavelmente a ser escorraçada por um Diego zangado, que temia estar a fazer uma grande asneira. Se não tivesse cuidado, podia estragar mais do que remediar aquela situação.

Jorge Valdano garantira-me que Diego já me tinha perdoado, mas eu desconfiava de que estivera só a dar-me coragem para que eu aparecesse em Trigoria e me oferecesse, inocente, ao sacrifício. Se acontecesse que não houvesse solução para a minha relação com Diego, então era preferível acabar já com a fantasia de que éramos amigos. Se, pelo contrário, tudo estava perdoado, então eu tinha de o comprovar pessoalmente e parar de inventar problemas que não existiam.

Foi o que Valdano reforçou no fim da sua visita. Eu tinha de ir até Trigoria. Fez-me prometer mais do que uma vez de que iria até ao centro de estágio no domingo e só deixou a pensão quando achou que eu o dissera com convicção. No fim da sua visita, estávamos os dois de pé e longe da proteção das costas do sofá que nos resguardara a conversa, chegou um grupo barulhento de seis pessoas, três casais que estavam alojados ali. Empalideci, temendo que o incomodassem, mas Valdano estava mais do que habituado a ser ignorado – era um dos argentinos campeões do mundo menos reconhecidos. Acrescentou que as pessoas só sabiam quem era Diego. Os outros dez que jogaram com Maradona passavam completamente despercebidos, a não ser que se tratasse de um adepto atento de futebol. Disse-me que estava tudo bem, o senhor da receção não sabia quem ele era, recordou-me. Para que eu comprovasse que estava mesmo tudo bem, passou por entre o grupo, pedindo educadamente licença. Ninguém o apontou como o célebre argentino de Madrid.

Fui para a porta da pensão. Fiquei a vê-lo a afastar-se pelo passeio até à avenida larga, mais adiante. O nosso encontro fora reconfortante, acalmara-me, animara-me. No entanto, toda a calma se esvaiu assim que pousei a cabeça no travesseiro e enchi a cabeça de conjeturas. De manhã, despertei com uma energia furiosa, uma vontade de aço a enrijecer-me músculos, alma e coração, e pus-me a fazer as malas.

O Outro Lado do VerãoWhere stories live. Discover now