3 de Julho de 1990 (Terça-Feira)

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Fomos para Nápoles cedo. A entrada no autocarro deu-se a partir das oito e meia e arrancámos de Trigoria às nove da manhã em ponto. Aproveitei para dormir, eu e outros jogadores que tinham saído da cama contrariados. Alguns ressonaram bastante na viagem de três horas, mas esse ruído infernal embalou-me e descansei da noite que passei parcialmente em claro.

No autocarro, sonhei com Burruchaga. Ele não me evitava e eu não me acanhava. Conversávamos normalmente e fazíamos tudo juntos. Comíamos no restaurante numa mesa à parte que Diego costumava visitar para perguntar se estava tudo bem connosco, ajudava-o nos treinos, tratava-lhe dos equipamentos, trazia-lhe refrescos, jogávamos truco, víamos televisão, partilhávamos o quarto e a cama. Em suma, agíamos como se fôssemos um casal. Despertei aflita, porque eu não queria nada daquilo. Ao comprovar que fora apenas um sonho estúpido, suspirei de alívio.

A tensão do dia podia ser cortada à faca. O jogo entre a Argentina e a Itália em Nápoles tinha uma enorme importância para os dois lados da contenda. Diego exigira lealdade à sua cidade e a Itália esperava ter o apoio incondicional a que estava habituada. Na realidade, as duas equipas podiam reclamar para si a vantagem de jogarem em casa perante o seu público.

Dormir fez bem a todos, porque na chegada a Fuorigrotta havia boa-disposição dentro do autocarro. Muitas graçolas, gargalhadas, piadas e observações que visavam sobretudo Diego que, no mesmo tom de brincadeira, dizia que ia já telefonar ao capo para perguntar onde estavam as faixas alviceleste prometidas. A comédia estava a ser tão convincente que consegui esquecer-me do peso insuportável do significado daquele jogo para a minha sanidade mental, para o que eu considerava ser o meu futebol, e para o futuro de Nápoles, de Diego, da Argentina e do meu sonho.

A cidade estava como que suspensa. Exibia o bulício e a desorganização habituais, o trânsito caótico, o barulho imodesto, a poluição constante, a sujidade entranhada, as multidões agitadas, mas por detrás da fachada, o seu palpitar era incerto e aflito, numa taquicardia comum a todos os habitantes, velhos e novos. A ansiedade permeava ar, terra e mar, coroava o Vesúvio de uma neblina invisível, deixava o ambiente fosco apesar do dia luminoso e quente de verão. A divisão de Nápoles por causa do jogo, a exigência que se lhe colocava de ser italiana e argentina em simultâneo, a impossibilidade de se decidir entre duas paixões impossivelmente fortes e verdadeiras, tremulava em cada vibração da atmosfera que envolvia a região numa bolha. Se saíssemos da Campânia tudo se dissiparia. Lá dentro, era doença, miasma, fedor, partícula que contaminava os espíritos dos seus habitantes.

Cocei a pele dos braços com as unhas, desenhei-lhes riscos brancos que se tornavam vermelhos. Tive de parar para não fazer uma ferida. Não tinha de tomar nenhuma decisão. Seria da Argentina até ao fim da partida e do mundial, mas a pressão afetava-me, confundia-me, agastava-me. A cabeça começou a doer-me e ainda estávamos na hora do almoço.

Enjoada e maldisposta, brincava com a comida no prato e metia poucas garfadas na boca que mastigava indolentemente. Diego percebeu a minha perturbação, a forma pouco natural como eu reagia e ordenou-me que me alimentasse. Sim, deu-me uma ordem e foi bastante veemente. Achei-o zangado, impaciente, bruto. Não queria influenciar o seu estado mental para o desafio, não queria ser acusada de lhe ter prejudicado a motivação e a concentração. Pedi-lhe desculpas e raspei o prato, repeti a sobremesa e bebi litros de água gaseificada. Sem que ele visse, ou que houvesse alguém que lhe pudesse contar, antes de lavar os dentes, vomitei tudo na sanita.

– Estás tão pálida... o que é que se passa? – perguntou Troglio quando apareci numa sala onde eles se juntavam para descansarem durante a digestão. Seguiriam depois para o curto treino de adaptação ao relvado.

O Outro Lado do VerãoWhere stories live. Discover now