Chorei durante a noite inteira até de madrugada, o sono completamente perdido, o dia seguinte totalmente comprometido.
A Bélgica tinha sido eliminada do mundial e eu não os tinha acompanhado, como prometera ao Enzo e a Stéphane naquela minha visita rápida e envergonhada ao centro de estágio dos belgas. Focada nos meus problemas com Diego e com a Argentina, esqueci-me de tudo, das minhas memórias, das minhas convicções e dos meus limites. Não me reconhecia quando voltava um olhar analítico e censurador para mim própria. Odiava-me com ganas. E assim, nutrida numa rebeldia que me anulava em vez de me reconfigurar, tinha perdido a Bélgica sem um último abraço, sem mostrar como eu ainda os adorava e prezava a sua amizade.
Dias antes confessara a Diego que não tinha sentido nada quando vira jogar os belgas. Era verdade naquele dia. Nesta noite era mentira. E entre os dois extremos, eu via que me tresmalhava, sem fixar os pés num ponto reconhecível, e isso era inaceitável. Eu não era daquela maneira. Mais, não podia ser daquela maneira. Desnorteada, oca, superficial, idiota.
Não me podia despedir dos belgas, nem despedir dos argentinos. Restava-me aquilo que eu, na base, era: uma rapariga portuguesa de dezoito anos que tinha acabado de completar o secundário e que se empenhava para entrar numa universidade com o objetivo de prosseguir a sua educação e conseguir um diploma que lhe abriria as portas do mundo do trabalho com um bom emprego. A aventura do futebol, conhecer jogadores mundialmente famosos, era um pequeno aparte que não me definia, nem determinava a minha personalidade e as minhas ambições.
Quatro anos antes, no México, tinha havido um sonho, era certo. Quinze dias extraordinários de descobertas, maravilhas e novidades que, em Itália, se esgotavam como água a escorrer da bica de uma fonte seca. Estava na altura de despertar.
Esperei que a maioria dos hóspedes se afastasse da casa-de-banho para poder utilizá-la a meu bel-prazer, sem ser incomodada pela pressa de alguém. Tomei um duche prolongado, esfreguei a cara com vigor para limpá-la de lágrimas e da insónia maldita que não me fizera pregar olho. Vesti-me e saí. Passeei pelo centro de Roma, comprei postais que recordavam o que tinha visto, à falta de uma máquina fotográfica. Passei por uma igreja, entrei e cumpri, por fim, a promessa que fizera no domingo de acender uma vela para agradecer pela vitória alviceleste sobre o Brasil. Dobrei o pescoço e rezei. Uma curta prece. Deus, não sei o que faço aqui... Será que já terminou tudo e eu só estou a enganar-me, a manter-me agarrada a este fiapo de realidade, como um fantasma que se recusa a fazer a passagem para o Além? Deus, obrigada por tudo o que vivi até aqui. Ilumina-me. Ajuda-me a seguir o meu caminho. Ah... e continua a proteger Diego e a sua Argentina.
Almocei num restaurante simpático, comi com apetite uma refeição lauta com primeiro e segundo prato, sobremesa e café. Reforcei a minha provisão de água com outra ida ao supermercado, regressei à pensão. O velhote entregou-me a roupa lavada e paguei-lhe pelo serviço.
A seguir liguei para Trigoria. Falei com Signorini e pedi-lhe que me trouxesse o resto das minhas coisas. Desocupava o quarto no centro de estágio. Ele não me tentou demover e fiquei triste. Não deixei a tristeza alastrar-se, contudo. Logo falaria segunda vez com o professor e faria todas as perguntas para me tranquilizar. Era melhor assim. Demasiada pieguice acabaria por inquinar a minha escolha.
Hoje, e nos dois dias seguintes, não haveria mundial. Seria o segundo intervalo na competição em que se preparariam os quartos-de-final, a acontecer nos próximos sábado e domingo. Dois dias, oito equipas, quatro jogos, à tarde e à noite. Essa fase abriria com o Argentina, Jugoslávia. No mesmo dia aconteceria o Itália, República da Irlanda. No primeiro dia de julho teríamos a RFA frente à Checoslováquia, e a Inglaterra contra os surpreendentes Camarões. Naquela altura, o melhor marcador do mundial era o checoslovaco Skuhravy, com cinco golos, que sonhava com a presença da seleção do seu país nas meias-finais e com a conquista da bota de ouro, mas os italianos tinham o artilheiro Schillaci que iria perseguir também esse troféu pessoal, e não permitiriam que um estrangeiro roubasse a glória ao seu herói.
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O Outro Lado do Verão
Historical FictionUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...