18 - ARREMETER

644 126 75
                                    


ARREMETER (v.) utilizado na aeronautica, que significa abortar uma aterrisagem, subindo bruscamente a aeronave para ganhar altitude e impedir a aproximação ao solo.


Caroline

A sensação de perder tudo é desesperadora, é como estar em um voo complicado em noite de tempestade. Aliás é assim que eu tenho me sentido, em tempestade. A minha cabeça fala uma coisa, meu corpo diz outra, meu coração não tem mais voz sequer e tudo isso enquanto eu trêmulo, como se quisesse sair desse limbo, sem conseguir de fato me livrar. Hoje o meu maior inimigo é o meu pensamento, que em total desordem me desconcentra, me abala como uma turbulência abala a estabilidade do meu avião. Estar nessa casa me traz para um lugar infeliz de total inferioridade, de agonia, parece que tudo aqui grita comigo como se eu fosse um lixo da pior espécie. Já não bastavam as pessoas, agora os meus lugares também parecem enfeitiçados para me transformar num monstro.

O zumbido no meu ouvido me faz sacudir a cabeça e um ponto dela latejar acredito que pela velocidade do movimento. Raiva, tristeza, mágoa, frustração, tudo junto passa por dentro de mim gritando em uma luta interna onde quem conseguir me derrubar vence. A voz e as falas da psicóloga me dizendo que eu sou a causadora de tudo que tem acontecido com a Rosa, com as crianças, de longe foi a pessoa que mais me atingiu disfarçada com a voz calma e polida. A Dra. Roberta falou na minha cara que a doença da Rosamaria era eu, é como se eu ainda estivesse lá ouvindo as palavras em um eterno looping e cada vez mais alto, agora eu me sinto sufocada, tudo dói e retorce em mim, como se eu estivesse sendo simplesmente surrada por alguém ou algo ou a minha própria mente.

— Eu não fiz nada! — Minha voz entrecortada responde ao vazio. — Essa culpa não me pertence, eu sequer estava aqui.

A dor do incômodo é violenta, minha cabeça dói que parece ter passado por um rolo compressor gigantesco indo e voltando. Se esse é o inferno, eu não quero mais, eu não aguento. O maior sentimento de fracasso, o maior sentimento de vazio, de impotência me davam dor física. Como se eu estivesse em um embate comigo mesma, uma luta corporal, algo tão violento quanto.

"Fracassada, inútil, maldita"

Tudo que eu ouvia era dolorido, mas a minha cabeça gritar o fracasso iminente que se tornou a minha vida só piorava tudo em grandes proporções. Acontece que eu não entendo o porquê dessa culpa toda cair sobre mim, quem escolheu pegar o carro destemperado não fui eu, eu nem estava em casa, eu não estava na cidade. Agora é muito fácil que a culpa recaia sobre mim, é factível que aconteça inclusive já que precisa achar um culpado, que seja Caroline.

"Você merece! Você causou tudo isso, por sua causa você está perdida, jogada às traças. O pior, o vazio e a solidão ainda são poucos pra você, Carol."

O inferno da minha mente gritava palavras de ordem, quanto maior o alcance das vozes, maior era a dor latejante da minha cabeça maldita. Como foi possível aquela psicóloga entrar com tanta facilidade na minha mente, a ponto de fazer doer tanto?

— Eu não fiz nada! Cala a boca, inferno! Sai daqui! — Aos gritos, e com movimentos involuntários, eu comecei a estapear a minha própria cabeça, de alguma forma  eu pensava que aquilo podia melhorar o caos de dentro. Mas como o esperado, foi em vão.

Outro zumbido forte no ouvido e uma dor latente e ainda mais pungente. Meu corpo se encontra completamente exausto, eu só preciso dormir, tentar parar, e se minha mente não vai parar por bem que seja por mal então. Vou até o banheiro e acho a caixa do remédio que eu tinha para dormir, o qual me foi indicado assim que entrei na aviação por conta das variações de fuso. Me conhecia, e conhecia bem meu corpo, sabia que a dosagem padrão hoje não me faria efeito, então dobrei a dose e teria meu momento de paz, eu precisava disso, e ninguém poderia me julgar por isso. Caso tivesse alguém realmente preocupado comigo.

[...]

Fazem 15 ou 20 dias desde que o incidente no hospital aconteceu, minha cabeça continua a mil e meu corpo segue exatamente como nos primeiros dias, exausto e com dores fisícas como de alguém que levou uma surra. Nesse meio tempo não fui capaz de atender a qualquer telefonema ou chamada na porta de casa, não respondi mensagens, praticamente não sai de dentro do meu quarto. Estava nitidamente mais magra devido a falta de fome e um enjoo que não me largava, me obrigava a tomar banho e escovar os dentes, mesmo sem vontade alguma de me manter minimamente apresentável. Eu estava completamente irreconhecível.

"Caroline, eu preciso falar com você, filha! Atenda o celular, por favor. Eu estou preocupada!"

Recebi essa mensagem da minha mãe, mas como todas as outras ignorei, se for para mais uma vez falar sobre como eu causei mil coisas a Rosamaria e aos nossos filhos, eu passo. Não estou disposta a tal assunto.

As frases da psicóloga seguiam rondando a minha mente ainda no mesmo looping eterno e como uma cilada da minha mente, as lembranças e momentos foram me sucumbindo cada vez mais até que depois dos primeiros dias, quando percebi que meus familiares pararam de tentar falar comigo, e uma nova sabotagem da minha cabeça comecei a pensar que talvez ela realmente pudesse ter razão em suas falas e eu ser o grande problema deles.

Mas o que eu estou fazendo de errado? Porque eu seria o problema, se tudo que eu faço é para dar o melhor para eles? Como eu posso ser a culpada pela tristeza deles?

Preciso voltar ao trabalho, mas como fazer isso sem que esses malditos pensamentos continuem ecoando na minha mente? Talvez eu realmente precise de mais uma conversa com aquela mulher, mas dessa vez para fazer com que ela veja o meu lado e não apenas aponte o dedo para mim. Essa seria a minha vez de falar, e não só ouvir.

Como não queria encontrar ninguém de diferente, optei por ligar para o hospital e pedir para falar com ela, ela me passou seu telefone e marcamos uma consulta. Essa mulher tá me fazendo enlouquecer e ela vai ter que arrumar isso.

[...]

Dois dias se passaram desde o dia que eu marquei com Roberta, hoje seria o grande dia, se é que eu poderia dizer assim. Levanto da minha cama, faço minha higiene matinal e não me dou ao trabalho de escolher uma roupa, coloco a primeira que vejo pela frente. Me olho no espelho e percebo o quão acabada eu estou, continuo sem conseguir comer direito, e mal durmo uma noite inteira, então minhas olheiras são bem notáveis, mas não me darei ao trabalho de tentar disfarça-las com maquiagem. Para o dia de hoje, os meu óculos escuros e bastante café para me manter acordada, serão o suficiente, assim eu espero.

Roberta me indicou um consultório particular depois de uma certa relutância minha em ser atendida no hospital. Eu não quero ter que ver ninguém da minha família e dar explicações desse sumiço repentino, e sei que essa minha insistência de atendimento fora de lá e meus motivos para isso se tornarão pauta com ela, mas isso será um problema para daqui a pouco e bem mais fácil de lidar do que as pessoas que eu poderia acabar encontrando no caminho.

Uns 35 minutos após sair de casa, cheguei no local onde tínhamos marcado. Estacionei meu carro, peguei somente o necessário e fui até a portaria do prédio.  Logo me identifiquei e esperei que minha entrada fosse liberada. Estava ansiosa para acabar logo com tudo isso, deixar esse turbilhão de lado e conseguir voltar seguir a com a minha vida.

Após chegar na sala marcada, a secretária me avisou que a Roberta ainda estava terminando um outro atendimento, então que era só eu aguardar ali na recepção. Depois de um pouco mais de cinco minutos de espera enquanto eu observava tudo a minha volta, minha cabeça começou a idealizar e passar diversos scripts de como esse nosso encontro aconteceria. Sim, um encontro para uma conversa, eu me nego a dizer que estou vindo a uma consulta, afinal de contas estou vindo responder e cobrar dela uma solução para todo o problema que ela me causou.

Fui tirada de meu transe, com a mão de Roberta em meu ombro, e gelei. Aquele momento tinha chegado, e ao olhar para ela, pela primeira vez eu sentia medo do que poderia acontecer.

***
O aniversário é da Rosamaria, mas o presente é de vocês! Esperamos que gostem. Até quinta-feira 😉

SKYLINE.Where stories live. Discover now