Quatro horas depois

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Quatro horas depois

Ouvi uma batida de pedra contra o vidro de meu quarto e percebi que havia caído no sono enquanto lia pela terceira vez as cartas de meu irmão.

Minha mãe quase chorou ao me desejar boa noite... acho que fazia meses que eu não recebia um beijo de boa noite dela.

Tentei não perceber a análise minuciosa dela sobre meu hálito ou a condição de minhas pupilas; ela estava preocupada, porém ela já foi mais discreta, antes apenas aparecia tentando encontrar alguma garrafa ou envelope suspeitos.

Eu a preocupei muito nos últimos seis meses.

Levantei-me de minha cama e andei até a porta esfregando os olhos, observando que Jason estava atrasado, muito atrasado.

Já era meia-noite.

Empurrei para cima o vidro, tentando não fazer barulho; Bliss estava sendo recarregada, mas ela era equipada com um modo de alarme que deveria disparar caso houvesse algum barulho ou vulto suspeito pela casa.

Olhei para o negro véu noturno a procura da silhueta de Jason do lado de fora. Estava difícil, o bairro já havia ido dormir, apenas aqueles que fariam algo ilícito estavam acordados.

Ele se aproximou e sorriu para mim, abri um espaço para ele e ele pulou a minha janela com facilidade que me deixou extasiada, fechou-a e puxou as cortinas, estávamos sozinhos no escuro.

Tateei a parede até encontrar o interruptor do meu abajur e o acendi, era mais discreto do que a lâmpada.

— Obrigada por ter vindo — agradeci sorrindo e cruzando os braços sobre o meu peito sentindo o meu moletom quente pelo calor do meu corpo.

— Então, por onde começamos? — ele perguntou vasculhando o quarto, certamente estava com pressa.

Eu também queria voltar para a minha cama.

Suspirei e ajoelhei, alcancei as duas caixas de papelão embaixo de minha cama e as puxei com cuidado para não fazer barulho.

Estávamos sussurrando, murmurando, evitando o barulho proposital.

Retirei primeiro o fax e o coloquei ao lado enquanto puxava o datilógrafo. Agora era a vez do especialista fazer sua mágica.

— Você pode ficar com o datilógrafo se conseguir recuperar no mínimo uma mensagem do fax — eu disse dando ênfase ao número. O quanto mais, melhor.

Ele se ajoelhou e retirou do bolso do seu casaco um estojo com aparelhagem profissional de reparos que eu não entendia nada.

Sentei-me em minha cama e fiquei observando-o fazer o seu trabalho, porém, antes mesmo de ter começado, parou, olhou a tomada e olhou para mim.

— Você tentou ligá-lo? — ele parecia desconcertado e ao mesmo tempo suprindo um riso dentro de sua boca.

— Fiquei com medo de não saber mexer, então não fiz nada além de esconder — dei de ombros observando a reação dele — pode conectar com aquela ali – eu apontei para a tomada do meu computador.

Ele assentiu e arrastou com cuidado até perto da tomada e o ligou, as luzes azuis-claros e brilhantes acenderam. Fez um barulho um pouco mais alto do que eu havia previsto, entretanto foi apenas um “bip” e depois parou.

— Você tem uma nova mensagem — olhou ao seu redor — onde tem uma folha de papel?

Saltei com cuidado até o meu criado fazendo questão de não fazer barulho; já me bastava o esforço de controlar meus nervos para que eu não surtasse na frente daquele garoto, eu ainda estava tentando falar baixo, então não conseguiria me manter discreta por mais tempo.

Entreguei a ele algumas folhas de redações antigas, matérias que eu havia imprimido para estudar e já estavam velhas, ou apenas algo que havia me interessado sobre universidades mesmo faltando meio ano para eu ingressar oficialmente em uma.

Ele as encaixou no fax e apertou o botão verde, ou deveria ser o botão verde já que estava desbotado e completamente riscado.

Minha boca estava seca.

Fez barulho; parecia a voz esganiçada de Bliss quando algo dava errado na conexão entre o pen-drive e o toca-som que eu pedi para meu pai instalar em suas costas sem saber que isso permitiria que ela falasse.

As folhas foram engolidas pelo fax, saindo do outro lado com algo escrito, tentei ler, porém Jason estava na minha frente, observando tão compenetrado a máquina funcionar que eu fiquei incomodada em atrapalhá-lo.

Tive que controlar minha ansiedade.

A maneira como ele tinha devoção pelo funcionamento daquela relíquia era quase o mesmo olhar de meu pai; acho que eles se dariam bem.

Então o fax parou de funcionar e ele retirou a folhas, colocando-as na ordem e olhando para elas, passando cada uma, eram três ao todo, para depois olhar para mim.

Ele estava pálido como se tivesse visto uma assombração passar por ele ou um fantasma tivesse tocado-o. Ele estava arrepiado seus cabelos loiros estavam arrepiados e seus olhos cinzentos, incertos sobre o que fazer.

— Que jogo é este Elisabeth? — ele segurou as folhas fora do meu alcance esperando pela minha resposta.

Não fazia ideia do que ele estava falando, provavelmente era a real e verdadeira razão para meu irmão ter morrido, talvez ele nunca a tivesse lido e morreu por isso.

— Me entregue Jason! — deixei minha voz subir estendendo minha mão com os dentes trincados, fosse o que fosse que estivesse escrito ali, eu tinha o direito e o dever de ler.

Ele respirou fundo como se estivesse entre o ético e o certo, e colocou as folhas em minhas mãos.

Logo percebi que elas não começavam com o usual cabeçalho digitado da pessoa misteriosa, era diferente, mais informal e estava escrito:

Querida Ellie,

Continuava com palavras que pareciam um borrão em minha visão por causa das lágrimas que escorriam pelas minhas bochechas acabando por definitivo a minha greve de choro.

Eu não chorava desde a morte de Will.

A carta era finalizada com algo ainda mais impactante do que o começo.

Do seu defunto irmão, William

Defunto irmão.

Defunto irmão.

Ele já sabia que iria morrer e escreveu a carta como se já estivesse morto. Eu sabia que este era o seu plano, pois ele sempre disse que gostaria de escrever algo depois de morto, como se fosse possível... e ele o fez.

O maldito escreveu uma carta para a sua morte.

Suicídio ou assassinato?

— Ei... — Jason tentou tocar o meu joelho e eu empurrei a sua mão para longe de mim, afastando-o do meu corpo enquanto eu abraçava minhas pernas contra o meu peito tentando respirar.

Não conseguia.

Estava sufocando.

Eu precisava de álcool para poder preencher o espaço vazio em meu peito. Eu precisava esquecer daquilo. Precisava pensar em qualquer coisa que não fosse naquilo.

Eu queria...

Não precisava de álcool.

Eu queria, queria desesperadamente.

No entanto eu não iria. Eu era mais forte do que aquilo.

— Vá embora Jason, apenas vá embora — eu solucei as palavras não tendo coragem de olhar para ele depois deste escândalo em proporções épicas.

— Eu sinto muito.

Ouvi a janela se abrindo, passos, janela se fechando, soltei a carta e olhei para o meu lado, o fax ainda estava ligado e o datilógrafo estava ao seu lado.

Ele não pegou o combinado, foi embora depois de conseguir uma mensagem do fax, então não estávamos quites. 

EstilhaçosWhere stories live. Discover now