Um dia depois

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Um dia depois

Ainda era domingo, final de semana que se arrastava infindavelmente, e eu estava sozinha em casa, ignorando algumas ligações de números desconhecidos enquanto tentava me concentrar na lição de casa.

“Estava estudando, o dia estava claro, porém as nuvens estavam vindo. Época de chuva a vista.”

Não era muito difícil, eu poderia resolver alguns exercícios de química e matemática, até mesmo as duas matérias misturadas, porém não cansava de encarar a gaveta em que as cartas estavam guardadas.

A porta se abriu e eu estava pronta para dizer que era para me deixarem em paz, porém era apenas Bliss.

Conectei meu pen-drive a ela e peguei as cartas, ela piscou com seus olhos biônicos e soltou algo que parecia um suspiro, porém era um chiado.

— O que há de errado Elisabeth? — ela perguntou com paciência, parada a minha frente, esperando, como sempre fez.

Acho que a única pessoa que eu jamais me imaginei abandonando era Bliss. Eu não conseguia pensar em uma maneira de mandá-la embora, afinal aquilo que eu construí para ser a sua personalidade era algo meu, e eu não poderia me descartar.

Levantei-me e fechei a porta, eu poderia falar o que quisesse para ela sabendo que não revelaria meus segredos, pois eles estariam bem guardados quando eu retirasse meu pen-drive.

Quantos segredos e desabafos eu guardava dentro dele?

— Eu acho que Will estava mexendo com algo grande antes de morrer, algo perigoso — sussurrei sentando-me em minha cama, percebendo que havia recebido uma mensagem no celular.

Ignorei-a.

— Como assim? O jovem William era uma criança ingênua, como ele poderia estar fazendo algo contra si mesmo? — se fosse humana, estaria com as sobrancelhas franzidas e o cenho contraído.

— Ele não era tão ingênuo quando pregava, ninguém é o que parece ser nos últimos tempos — murmurei soltando o ar de meus pulmões.

— O que ele poderia estar fazendo de errado? — sua confusão era a minha, suas dúvidas penetravam a minha mente, seus temores eram meus.

— Eu não sei, não sei se eu quero descobrir — segurei as cartas com força contra a minha mão e as soltei, vendo que não importava o quanto eu quisesse destruí-las, as palavras dele não iriam embora — mas eu sinto que devo fazer isso por ele. Eu tenho que ser forte.

— Você não pode ser mais forte do que o seu limite.

— Eu posso alcançar o meu limite.

Ficamos em silêncio, provavelmente pensávamos o mesmo. E o que eu faria a respeito?

— Você vai tentar descobrir se ele se matou? — ela perguntou olhando para o chão, para os lados, a linha de seus lábios era digital, antiga, cheia de pixels — isso pode colocá-la em perigo.

— Eu já estou em perigo, as pessoas já estão atrás de mim, e eu acho que pode piorar — lembrei-me da noite de sexta, do homem que quase me afogou, talvez eu descubra o motivo com a ajuda das cartas — eu vou descobrir o que aconteceu.

— Sua vida não vale a vingança dele.

— A morte dele vale o meu esforço.

Ela estava prestes a dizer algo, sei que estava, entretanto acabou parando quando ouviu meu celular tocar.

Eu queria ignorar mais uma vez, porém era uma ligação.

“Ele me ligou outra vez e eu continuei ignorando.”

Ninguém me ligava.

Olhei a tela, era Jason, o que poderia ser tão importante para ele me ligar em pleno domingo? Não poderia esperar mais um dia?

— O que foi? — atendi já impaciente, não estava exatamente animada para voltar a conversar com Bliss, contudo eu estava chegando a algum lugar.

Parecia que eu estava falando com o meu bom senso, era como falar com a minha consciência.

— Você precisa me encontrar agora, é importante — ele disse, sua voz não era urgente, disso eu tinha certeza, porém a sua calma me assustava, parecia um céu limpo antes de uma tempestade, exatamente o que aconteceu com William.

E William me ligou naquela tarde, na tarde em que ele... bem, ele havia me ligado duas vezes antes de pular do penhasco, ou era isso o que os horários diziam.

Uma ligação.

Duas ligações.

Uma morte.

Talvez a culpa seja minha, no final.

Pensando bem, a culpa era minha. Se eu não estivesse tão brava com ele... se ele não tivesse saído de casa por causa de nossa infantil briga, talvez não o tivessem pego, talvez ele não estivesse em perigo.

Ele poderia estar vivo agora.

Isso eu só saberia lendo as suas cartas.

— Como assim? O que aconteceu? — minha voz cresceu, levantei de minha cama e comecei a andar pelo meu quarto.

— Traga as cartas, eu sei que você não quer ler, mas... é importante — ele gaguejou.

Isso não poderia ser bom.

Peguei as cartas, coloquei em meu casaco e vesti a primeira roupa que encontrei, apenas para não sair de pijama na rua.

— Para sua casa? — perguntei já pulando a janela de meu quarto, pois era o jeito mais rápido de sair de casa sem minha mãe perguntar.

Tudo isso começou depois da minha briga com meu pai.

Por algum motivo ela achava que eu também iria me matar se saísse sem supervisão.

— Não, a praça é mais segura.

Segura? Agora eu estava em perigo?

Corri o mais rápido que consegui.

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