Dois dias depois

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Dois dias depois

Encontrei minha mãe prestes a sair de casa, ela não estava apressada, apenas com um balde em mãos e um olhar distante.

Perguntei o que ela pretendia fazer com um balde vazio, perguntei se era uma nova invenção de meu pai, perguntei onde ela estava indo.

Sua resposta foi um sorriso com um menear de cabeça, inspirou fundo e voltou a sorrir, estava ainda mais pensativa do que estava antes.

— Eu vou pegar conchinhas na praia — ela disse, por fim, tentando aparentar normalidade, porém falhou quando franziu o nariz depois de pronunciar as palavras.

— Quer companhia? — aquilo não era o que eu tinha em mente, na verdade havia uma pequena pilha de trabalhos que eu tinha que fazer, porém ver minha mãe sorrir e assentir timidamente com a cabeça me fez mudar de ideia.

Eu estava precisando de um tempo mãe e filha apenas para variar da minha trágica rotina tentando esquecer-me do inesquecível e lembrar-me da memória vaga.

Começamos a andar pela praia e eu senti que ela colocou a mão ao lado da minha, segurei-a e entrelacei nossos dedos. Sabia que as pessoas, principalmente os alunos do meu colégio, iriam rir de ver uma garota de dezessete anos andando de mãos dadas com a mão na rua e eu não estava me importando com isso.

Queria contar para ela sobre William, sobre minhas suspeitas sobre a sua morte, sobre a minha quase morte, sobre Jason e sobre a minha vida. Queria poder voltar a ter um relacionamento aberto com ela, mas não conseguia.

Eu formulava as frases em minha mente e quando estava prestes a pronunciá-las, elas iam embora e me deixavam, eu ficava sem o que falar, fechava minha boca, abaixava o rosto e encarava as rachaduras no chão.

Acho que a distância que eu coloquei entre nós durante no tempo que eu estava de luto pela morte de meu irmão não poderia ser superado. Ela sempre existiria ali, entre nós duas, como um abismo.

Levantei meu rosto e segurei ainda mais forte na mão dela, olhei para o seu rosto, vi uma lágrima escorrer pelo seu rosto. Soltei sua mão e passei meu braço pelos seus ombros, ela apoiou sua cabeça em meu ombro e continuamos andando, provavelmente estava desconfortável, porém eu estava tentando consolá-la, e ela estava deixando.

As vezes o abismo que eu criei não poderia ser aterrado, ele sempre existiria e poderia ficar cada vez maior, entretanto nada me impedia de construir uma ponte que ligasse os dois lados. Uma ponte de madeira e corda, frágil, perigosa, inconstante, porém eu a atravessaria.

Eu tinha que consertar tudo o que podia antes que fosse tarde demais, antes que eu cometesse o mesmo erro de William e pensar que eu era a dona do tempo.

— Eu estou saindo com Jason — comentei afagando seu braço, soltei-a e retirei meu tênis segurando-o com uma mão para voltar a segurar a dela com a outra, não queria que entrasse areia em meu tênis.

— Ele é um bom garoto — ela comentou limpando a lágrima que ainda escorria de seu rosto e sorriu para mim — vamos pegar as conchas.

Ela estava usando um vestido de verão solto, lindo, colorido, o vento o balançava, ela exalava vida e juventude.

Sempre invejei minha mãe, neste momento eu não a invejava mais, pois eu sabia que o que ela mais queria era transmitir sua vida para todos ao seu redor, principalmente para mim.

Ajoelhamos no chão e começamos a procura. Ela me olhava perifericamente para ter certeza que eu estava bem, sabia que eu não me aproximava do mar há anos, sabia que eu tinha medo dele.

Dei dois passos e coloquei meus pés dentro dele enquanto arregaçava minha calça tentando não molhá-la, sentindo as ondas quebrando em minhas canelas.

— Ele me ajudou a superar o medo — falei depois de um tempo, depois de ter saído do mar e voltado a procurar conchas.

Algumas eram pequenas, outras grandes, havia algumas lisas e outras com textura. Algumas estavam quebradas, outras inteiras. Algumas eram de um bege claro, outras combinavam com o vestido de minha mãe.

— Jason? — ela perguntou e eu assenti, ela sorriu, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha voltando a olhar para o chão.

— Você é linda mãe.

Ela parou o que estava fazendo e me olhou. E eu olhei para ela.

Seus cabelos eram castanhos da cor do meu, porém nos dela havia fios grisalhos que davam ainda mais cor aos seus cabelos selvagens. Seus olhos eram verdes, diferentes dos meus, porém a intensidade dos dela eram tão profunda, tão marcante, que eu desejava poder ter o olhar dela, não necessariamente seus olhos, todavia a expressão.

Ela tentou pronunciar algo com conchas na mão, conchas meticulosamente escolhidas que derrubou e não viu o oceano reclamá-las, estava ocupada demais olhando para mim e me vendo.

Ela via minhas rachaduras como as na rua, as trincas, as partes, o bolor, a poeira, os rasgos, os remendos. Ela via o que as pessoas tentavam não ver, tentavam ignorar.

E ao invés dela me julgar, me olhar com decepção por não ter mais a filha de ouro que um dia teve, de perder o seu precioso filho e me culpar por eu não ter avisado como ele estava desesperado, ela me perdoou.

Eu nunca conseguiria me perdoar por tudo o que eu falei a ele, por tudo o que eu não falei e ela me perdoou, ela fez algo que ninguém teria coragem de fazer, ela me amava mesmo assim.

Corri para o seus braços, para o abraço e prendi-me a ela como uma criança assustada. Com força, ela me abraçou de volta fazendo cafuné em meus cabelos e desembaraçando-os no processo, o que me fez rir, uma risada desgostosa.

— Eu me sinto tão perdida! Não quero acabar como papai — murmurei pensando que iria chorar, porém não chorei.

Era estranho, eu não chorava quando deveria, chorava quando não queria.

— Seu pai ama você, ele só precisa de tempo — minha mãe, a apaziguadora das brigas familiares, disse com um suspiro embalando-me e murmurando uma canção de ninar.

— E se eu não tiver tempo? William não teve tempo. Eu briguei com ele e nunca pedi desculpas! Nunca vou poder pedir desculpas por que ele morreu! Ele morreu... — era a primeira vez que eu realmente pronunciava as palavras e elas tinham um gosto amargo.

Tinham gosto de verdade.

— Não — de maneira doce e incisiva, ela disse fazendo-me parar de me lamentar — a culpa não foi sua, seu irmão fez o que fez por que ele quis.

— Mas mãe, se eu...

— Não teria mudado nada. Deus escreve o seu destino no momento em que você nasce. Nada que você fizesse poderia mudar o destino de William — os braços dela afrouxaram e ela olhou para mim.

— Deus quis que William morresse? — estava descrente.

— Deus tinha outros planos para ele.

Nós ficamos nos olhando, conversando com o olhar, sem pronunciar palavras, não precisávamos daquilo.

— Eu sinto falta dele, parece que parte de mim nunca mais vai ser a mesma sem ele — murmurei sentindo o vento, o gosto do mar, dentro de minha boca e desta vez eu não recuei por me lembrar daquela tarde.

“Retirou minha cabeça da água quando eu já não estava mais conseguindo respirar direito por tanta água que havia engolido meu esôfago estava em chamas, ardia.”

— Isso é o que sentimos quando perdemos alguém que amamos. Faz parte. É uma ferida que leva tempo para cicatrizar e a sua marca nunca vai desaparecer, mas você continua com a sua vida, pois sofrer não o trará de volta — ela tinha razão.

Ela não gostava de falar de Will, porém não me negava uma conversa sincera, sempre me incentivou a falar sobre ele, principalmente quando ainda era recente a perda.

Depois disso eu comecei a ignorar, pensei que se eu não falasse da perda dele, eu não sofreria.

Eu tinha que fazer a ferida sangrar para poder começar a estancar. Tinha que fazer o sangue envenenado ir embora.

Eu tinha que libertá-lo.

“Você tem que parar de se prender a ele, tem que deixá-lo partir, encontre a verdade, apenas ela poderá libertá-lo.”

EstilhaçosWhere stories live. Discover now