Mais de quatro meses depois

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Mais de quatro meses depois

Depois que meu irmão morreu havia alguns lugares que eu não costumava ir.

Não ia à Igreja.

Não ia à praia.

Não ia ao penhasco.

E eu também nunca havia ido ao cemitério.

Quem fosse pensar, jamais entenderia o que estava vendo e por que eu passei tanto tempo parada em seu portão antes de entrar com um terço em minha mão.

Estava usando o mesmo vestido preto que usei um ano antes.

Jason estava esperando por mim ao meu lado, não reclamava o tempo que eu gastava em minha admiração tétrica e silenciosa do cemitério. Ele andava comigo em harmonia, entendia que eu não queria falar e eu acho que ele também não.

O lugar estava razoavelmente tumultuado, não havia escândalos ou excesso de pessoas, havíamos convidado o número exato de pessoas que se importavam com ele.

Não quis olhar quem estava lá ou quem não estava, isso pouco me importava. Notei apenas os memoráveis rostos: Jenny com sua gatinha branca — Bliss — Carrie, Gabriel e Vanessa.

Os quatro estavam mais próximos, principalmente Gabriel e Vanessa que havia se tornado melhores amigos desde o momento que ambos admitiram ter amado meu irmão da maneira romântica.

Carrie começou aulas de órgão depois de não conseguir mais fingir para sua mãe que estava no básico de piano e tocava aos domingos na igreja, ela simplesmente se encontrou naquele instrumento.

Gabriel não admitiu ao mundo que era gay, porém eu prestei atenção e via os sinais: o laço do seu cadarço era sempre meticulosamente amarrado, usava constantemente uma fragrância cítrica, seus cabelos arrumados com precisão médica, o modo como ele se entusiasmava com qualquer novidade sobre meu relacionamento e de Jason...

Jenny enviou uma de suas histórias para uma editora do continente e recebeu a aprovação, iriam publicá-la e estavam ansiosos para a continuação. Antes de mandar a história ela perguntou se eu não gostaria de ler. Ela havia escrito sobre a minha longa jornada para seguir em frente, porém trocou nossos nomes.

Eu chorei do começo ao fim, pois de alguma maneira ela conseguiu me refletir com tantas características e detalhes que nem mesmo eu reconhecia sobre mim mesma. Descobri que minha mãe, Jason, Carrie e Vanessa trabalharam em conjunto para a criação da minha personagem.

Ainda não era um sucesso, mal havia vendido cem cópias, porém ela estava animada sempre que via alguém da ilha com o seu livro.

Estilhaços, assim ela nomeou a história.

Vanessa estava com problemas para se controlar, sua vida era medida e calculada para não cair na tentação. Ela havia consumido drogas por quatro anos para tentar ser aceita pelo grupo de amigos e agora queria parar e tentar ser mais forte do que o vício.

Ela conseguiria.

Até uma mulher que trabalhava no correio veio falar comigo sobre as dezenas de cartas que William estava enviando para um endereço desconhecido no continente — eu ignorei aquilo depois de descobrir que era um galpão abandonado, afinal, o que ele poderia querer com aquilo?

Eu desisti de entender o meu irmão, eu apenas... eu o amava.

Ajoelhei contra o túmulo dele sentindo os olhos das pessoas ao meu redor, a trança já bagunçada pelo vento até chegar no local, e eu não senti medo de mostrar o que eu estava sentindo.

Minha mão passou pela pedra com a inscrição que demorou, porém estava exatamente como eu havia pedido para minha mãe encomendar.

“Amar vale o risco”

As pessoas não entenderiam o significado daquela frase, mas eu entendia e eu sabia que ele também entenderia.

Meus dedos estavam gelados com o contato contra a pedra e eu estremeci sentindo meus olhos se enchendo de lágrimas quando eu olhei a data de morte. Ele viveu pouco mais de dezesseis anos.

Meu aniversário aquele ano foi tétrico, queimei uma foto de William e uma rosa, queria ser nostálgica e romântica, queria de alguma maneira que ele estivesse comigo enquanto eu fizesse dezoito anos; não estava pronta para a maioridade.

Eu estava com medo do futuro, muito medo para ser mais exata, mas eu não queria parar onde estava, havia muito que eu queria deixar para trás e ao mesmo tempo levar comigo.

— Will — eu murmurei com a minha testa contra a pedra, não ouvia as pessoas conversando ou os choros silenciosos, eu não ouvia nada além do silêncio — eu tinha preparado um grande discurso sobre tudo o que aconteceu e eu queria que você soubesse, mas — suspirei — nada disso importa. Só uma coisa você tem que saber... uma coisinha que você tem que entender...

Engoli a seco retirando algo de meu bolso e colocando contra a terra úmida perto da lápide.

— Eu amo você como jamais amarei ninguém e mesmo você dizendo que amar não faz bem, eu sei que você também me amou. Você ainda me ama.

Levantei-me, não pensei em retirar a terra de meus joelhos ou limpar as lágrimas.

Minha mão se demorou a soltar a lápide, porém quando a fez, eu não olhei para trás, queria...

— Siga em frente William, você está livre para ir embora — eu murmurei me afastando das pessoas para ter o meu tempo comigo mesma.

De agora em diante, eu estava sozinha...

Sozinha junto com outros milhões de pessoas.

Não tão solitário quanto eu pensei que fosse.

“Se você tem medo da solidão, não há o que temer, existe outras pessoas que podem segurá-la, mas deixe que William siga seu caminho. Está na hora dele, não a sua.”

Em seu túmulo eu coloquei a melhor réplica que eu consegui encontrar do colar que ele havia me dado dois anos atrás. Cinco pétalas de uma flor, um para cada membro da família.

Adeus Will, eu vou sentir sua falta, mas está na hora de dizer adeus.

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