2. Retrato - Theo

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Dedos trêmulos apertaram o frasco vazio. Olhos marejados observaram o retrato no topo da estante, saldaram-lhe uma última vez e fecharam-se quando o corpo tombou no carpete. O coração parou pela segunda vez e o sofrimento se apagou.

***

Dobrei lentamente a última camisa e a coloquei dentro da pequena mala, sobre as outras cinco trazidas por meu melhor amigo, Klaus. Não as teria escolhido para essa longa estadia. Na verdade nunca quis estar ali, contudo diante da drástica situação do mês anterior haviam retirado minha posição de argumentar o contrário. Coube-me apenas acenar grato quando o amigo me trouxe as roupas amarrotadas e velhas, no fundo minha vontade era ser invisível e nem precisar de qualquer roupa.

Pacientes psiquiátricos não costumam ter muitos direitos a opiniões, principalmente quando são tachados de depressivos suicidas. O pensamento irônico me fez lembrar da situação miserável em que me encontrava. Ao menos hoje, eu conquistara uma parte de minha liberdade. Um suspiro aliviado escapou por entre meus lábios por estar livre daquelas paredes opacas e corredores com pessoas de olhar perdido vagando sem rumo.

Questões psiquiátricas não haviam sido de meu interesse durante a faculdade de medicina e depois de viver na pele um paciente e conviver com outros, pude ter certeza de que em nada me agradavam.

A área cirúrgica me encantou, e foi nesta que investi desde os primeiros meses de residente. Incontáveis horas de cursos, acompanhamentos como observador e as duas especializações, tudo calculado para a conquista de um cargo como médico-cirurgião. Aos vinte e nove anos eu era o mais novo e respeitado cirurgião ortopédico desse hospital, porém por um descontrole momentâneo joguei tudo fora.

O máximo que consegui, neste último mês, com minha experiência de médico-cirurgião de emergência foi convencer o psiquiatra responsável pelo meu caso a me dar alta antes do planejado. Eu estava bem? Provavelmente não, no entanto não aguentava mais nem um dia dentro daquela clínica psiquiátrica, um lugar no qual o único sentimento possível a mim era a vergonha.

Ter o aval de retomar minha rotina não significava que me sentia mais otimista sobre a vida, apenas que decidi vivê-la. Ao não ser mais um risco a mim mesmo, pude usufruir da liberdade, desde que mantivesse as visitas semanais ao psiquiatra. E assim, eu retomara as rédeas de minha vida, pelo menos era o que eu esperava.

Teria prometido qualquer coisa para me livrar daquele lugar, um espaço repleto de histórias de desgraças. Um lugar mantido a remédios que me deixavam lerdo; onde era observado constantemente; onde nem chorar ou enraivecer-se era permitido, sob pena de ser mais fortemente medicado. Um lugar para o qual não desejava voltar.

Peguei a mala e forcei os músculos da face a expressarem um sorriso educado quando um enfermeiro qualquer me acompanhou pela porta de saída com três enormes travas de alta segurança. Aquilo parecia uma prisão particular aos fundos do hospital em que passei tantos anos, uma prisão que eu nem lembrava saber da existência, mas que me marcaria como o louco suicida pelo resto de meus dias.

Em meu impecável arquivo de sucessos em cirurgias, contaria agora, páginas e páginas vergonhosas do tempo em que deixei de ser médico para ser um paciente psiquiátrico.

Eu estava longe de me livrar da tristeza cimentada em meu coração há três anos, mas pelo menos voltaria ao meu apartamento e, principalmente, retomaria uma parcela da rotina de médico, a única coisa que ainda me causava alguma distração.

Klaus me esperava do lado de fora com seu sorriso característico de um pediatra barbudo e com certa barriga, um Papai Noel Jovem, apelido dado pelos pacientes mirins. Seu sorriso alargou-se ao me ver, como se o fato de me permitirem passar por aquela porta com trancas significasse cura total. Se ele soubesse como me sinto distante disso, talvez ele tivesse me empurrado, sem hesitar, de volta para a psiquiatria ao invés de sorrir. A cena projetada em minha mente me fez soltar um riso discreto, resultando em maior contentamento do pediatra.

Corações RessuscitadosWhere stories live. Discover now