Em uma semana do meu retorno à emergência, nada mudara quanto ao modo como meus antigos colegas me viam. Eu continuava a ser o suicida descontrolado, para quem destinavam os procedimentos sem importância. Assim, entrei na sala 12 do último andar, extremamente irritado, e de certa forma humilhado, ao ser convocado para um simples procedimento que até um residente na sua primeira semana era capaz de realizar. Talvez deixasse uma cicatriz estranha, mas fecharia o ferimento.
O chefe da emergência me destinou a esse trabalho ao ouvir o pedido da enfermeira. Poderia ter mandado qualquer outro menos experiente e sem duas especializações em cirurgias, contudo me escolhera sem titubear. Ser selecionado para uma simples tarefa quando havia pernas e mãos a serem reconstruídas me impulsionara novamente ao buraco fundo dos sentimentos de derrota.
Ficou evidente que o chefe da emergência, no passado meu parceiro de cirurgias, sentia-se incomodado com a minha presença, tal como o resto da equipe. Os olhares acusadores me perseguiam; eu já não me sentava na lanchonete do segundo andar, onde o pessoal da emergência ia para almoçar ou jantar, procurando evitar o mal-estar de ver todos se calarem com minha aproximação.
As coisas não melhorariam nas semanas seguintes e, de certa forma, eu sabia que seria assim. O que pode ser mais abominável para um profissional que jurou defender a vida do que um colega que tentou se livrar da sua? Os pensamentos me alfinetaram.
No fundo não era a reação dos colegas que me afetava. Eu não nutria amizades no trabalho e nem tinha interesse em fazê-lo agora. O que me arrasava era a desconfiança vista nos olhos deles sobre minha capacidade em ser um cirurgião.
A cada chamada para operações ouvida pelos autofalantes da emergência, sentia meu coração apertar pela perda do antigo cargo pelo qual eu estudara e me esforçara tanto para conquistar. Mesmo antes de receber alta da psiquiatria, sempre estive pronto para realizar cirurgias, por que ninguém acreditava em mim?
Não importava o que acontecia em minha vida, ao entrar em uma sala de operações as preocupações desapareciam e havia unicamente o procedimento a ser feito presente em minha mente. Toda minha energia se concentrava na busca do melhor resultado, não adiantava garantir o movimento de um membro esmagado, a melhor aparência também era vital, pois queria devolver aos pacientes uma vida normal.
Seria prudente me mudar de cidade, procurar outro hospital onde eu pudesse exercer a profissão de cirurgião sem pessoas me tolhendo. O diretor do hospital teria me dado uma boa carta de recomendação para garantir que eu passasse a ser o problema de outra pessoa, contudo eu não estava pronto para afastar-me dali. Havia recordações demais naquelas paredes, impossíveis de abandonar.
Sofria cada vez que entrava em meu apartamento, na casa de Klaus, nos corredores do hospital, andava nos parques e até no mercado, ou em qualquer outro lugar no qual houvesse compartilhado minha vida com Clara, mas sabia que o sofrimento seria imensamente maior se estes lugares não estivessem lá para me confortar com as boas lembranças. Mudar-me seria enterrá-la outra vez e temer esquecê-la.
Na sala 12 a humilhação de ter sido empurrado para fora da emergência ocupava minha mente de tal forma que só desejava me livrar o mais rápido possível daquela jovem mulher de cabelos castanhos e com rosto salpicado de sardas com aspecto de garota sapeca.
Ao perceber a cicatriz deixada à mostra entre os seus seios por um decote sem nenhum constrangimento, o modo descontraído de falar sobre seu transplante e a não ansiedade diante da sutura feita em sua mão, impeliu-me a olhá-la com maior atenção. As marcas estavam expostas como se ela não guardasse segredos. Como ela poderia aparentar tanta felicidade em uma situação destas? Tão contrário de mim, tão destoante.
![](https://img.wattpad.com/cover/10631428-288-k939370.jpg)
YOU ARE READING
Corações Ressuscitados
RomanceAlguns corações precisam ser ressuscitados para continuarem vivos. Alguns precisam de desfibriladores, outros de compreensão. Esta é a história de Laís, uma jovem sorridente, que nunca soube se seu coração doente teria forças para bater mais um ano...