4. Sutura - Theo

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Em uma semana do meu retorno à emergência, nada mudara quanto ao modo como meus antigos colegas me viam. Eu continuava a ser o suicida descontrolado, para quem destinavam os procedimentos sem importância. Assim, entrei na sala 12 do último andar, extremamente irritado, e de certa forma humilhado, ao ser convocado para um simples procedimento que até um residente na sua primeira semana era capaz de realizar. Talvez deixasse uma cicatriz estranha, mas fecharia o ferimento.

O chefe da emergência me destinou a esse trabalho ao ouvir o pedido da enfermeira. Poderia ter mandado qualquer outro menos experiente e sem duas especializações em cirurgias, contudo me escolhera sem titubear. Ser selecionado para uma simples tarefa quando havia pernas e mãos a serem reconstruídas me impulsionara novamente ao buraco fundo dos sentimentos de derrota.

Ficou evidente que o chefe da emergência, no passado meu parceiro de cirurgias, sentia-se incomodado com a minha presença, tal como o resto da equipe. Os olhares acusadores me perseguiam; eu já não me sentava na lanchonete do segundo andar, onde o pessoal da emergência ia para almoçar ou jantar, procurando evitar o mal-estar de ver todos se calarem com minha aproximação.

As coisas não melhorariam nas semanas seguintes e, de certa forma, eu sabia que seria assim. O que pode ser mais abominável para um profissional que jurou defender a vida do que um colega que tentou se livrar da sua? Os pensamentos me alfinetaram.

No fundo não era a reação dos colegas que me afetava. Eu não nutria amizades no trabalho e nem tinha interesse em fazê-lo agora. O que me arrasava era a desconfiança vista nos olhos deles sobre minha capacidade em ser um cirurgião.

A cada chamada para operações ouvida pelos autofalantes da emergência, sentia meu coração apertar pela perda do antigo cargo pelo qual eu estudara e me esforçara tanto para conquistar. Mesmo antes de receber alta da psiquiatria, sempre estive pronto para realizar cirurgias, por que ninguém acreditava em mim?

Não importava o que acontecia em minha vida, ao entrar em uma sala de operações as preocupações desapareciam e havia unicamente o procedimento a ser feito presente em minha mente. Toda minha energia se concentrava na busca do melhor resultado, não adiantava garantir o movimento de um membro esmagado, a melhor aparência também era vital, pois queria devolver aos pacientes uma vida normal.

Seria prudente me mudar de cidade, procurar outro hospital onde eu pudesse exercer a profissão de cirurgião sem pessoas me tolhendo. O diretor do hospital teria me dado uma boa carta de recomendação para garantir que eu passasse a ser o problema de outra pessoa, contudo eu não estava pronto para afastar-me dali. Havia recordações demais naquelas paredes, impossíveis de abandonar.

Sofria cada vez que entrava em meu apartamento, na casa de Klaus, nos corredores do hospital, andava nos parques e até no mercado, ou em qualquer outro lugar no qual houvesse compartilhado minha vida com Clara, mas sabia que o sofrimento seria imensamente maior se estes lugares não estivessem lá para me confortar com as boas lembranças. Mudar-me seria enterrá-la outra vez e temer esquecê-la.

Na sala 12 a humilhação de ter sido empurrado para fora da emergência ocupava minha mente de tal forma que só desejava me livrar o mais rápido possível daquela jovem mulher de cabelos castanhos e com rosto salpicado de sardas com aspecto de garota sapeca.

Ao perceber a cicatriz deixada à mostra entre os seus seios por um decote sem nenhum constrangimento, o modo descontraído de falar sobre seu transplante e a não ansiedade diante da sutura feita em sua mão, impeliu-me a olhá-la com maior atenção. As marcas estavam expostas como se ela não guardasse segredos. Como ela poderia aparentar tanta felicidade em uma situação destas? Tão contrário de mim, tão destoante.

Corações RessuscitadosWhere stories live. Discover now