14. Filme e Pizza - Theo

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Ao ver o contentamento de Laís ao saborear a pizza, fiquei orgulhoso por ter tido tal ideia ao sair da locadora. Ela havia me ajudado e aceitado minhas oscilações de humor, trazer algo que ela gostasse era o mínimo que eu poderia fazer para agradecer.

Depois da conversa na sorveteria, eu havia adquirido certa tranquilidade com sua companhia. Contudo, foi somente ao assistir a sua entrevista dada no documentário de domingo que compreendei o porquê dela ser empática a mim: ambos carregávamos invisíveis fardos pesados. Sentíamos o mesmo, apesar de agirmos de modo diferente. Talvez fosse isso que nos envolvia nessa espécie de cumplicidade silenciosa existente, mesmo que nossa amizade tenha sido formada entre tropeços.

Laís escolheu um dos dois filmes para assistirmos. Ela não reclamou de minhas escolhas, embora eu soubesse não estarem entre os seus estilos preferidos. Até pensei em pegar um romance, como ela dissera gostar na primeira vez, contudo histórias de amor ainda eram desagradáveis pra mim e seria um abuso a minha tentativa de permanecer em equilíbrio.

Ela sentou com as pernas dobradas sobre o sofá, apoiando o prato com um pedaço de pizza sobre elas enquanto esperava o trailer terminar. Eu sentei, relaxado, ao seu lado, sua companhia começava a me fazer bem.

— Já recebi os papéis de minha matrícula e até separei uns livros para procurar na biblioteca.

— A biblioteca municipal me ajudou muito quando fiz minhas especializações em cirurgia. — Disse sem pensar, ela encolheu as sobrancelhas em confusão e eu percebi meu erro, ela não deixaria isso passar despercebido.

— Mas então por que está no atendimento clínico da emergência, se é especialista em cirurgia?

Humilhado, mirei o meu prato vazio colocado sobre a mesinha a frente, não me sentia preparado para entrar francamente neste assunto. Há pouco ia tão bem ao esquecer-me dos problemas e agora fora convocado a mergulhar novamente neles. Ela ainda seria minha amiga ao descobrir como fui fraco? Entenderia? Klaus, meu amigo há anos, tentava, mas não me compreendia.

Eu estava tão cansado de fingir que tudo estava bem, quando concretamente nada parecia realmente em seu eixo certo. Eu devia estar na cirurgia e não na emergência, como devia ainda ser casado, mas fiquei viúvo. Ela me observava sem saber o que fazer ao perceber que não era algo simples de explicar, e eu suspirei em busca de coragem.

— Eu perdi meu antigo cargo de cirurgião quando... bem, quando... eu fiz a besteira de atentar contra minha vida ingerindo remédios. — Confessei.

Como o esperado, ela me observou abismada e quase se engasgou com o pedaço de pizza que engoliu no susto. Meu coração batia acelerado, e meus músculos contraíram-se em ansiedade, ou seria vergonha diante de minha fraqueza? A vontade de correr para longe preencheu meu corpo.

Eu abusava de nosso começo de amizade, ao achar que teríamos o necessário para continuarmos amigos depois desse tipo de revelação terrível. Muitas coisas poderiam ser perdoadas, mas atentar sobre a própria vida nem sempre era uma dessas.

Pensativa, ela desligou a TV com o controle. Puxou o ar com força e me encarou, de um jeito tão profundo que eu tinha certeza de que ela conseguia ver toda a minha íntima escuridão.

— Sabe, eu já pensei em fazer o mesmo. É que algumas vezes as dores e o medo do que viria depois era insuportável. — ela sentia o mesmo que eu? Entendia-me? Sim, ela entendia. — Mas só não fiz por que eu não podia deixar minha mãe sozinha. — ainda olhando-me fixamente, ela pousou suas mãos sobre as minhas.

A revelação dela me fez abandonar qualquer controle novamente e deixei as lágrimas rolarem grossas por minha face. Finalmente alguém me compreendia! Alguém sabia como era não conseguir ver qualquer outra saída, em como era estar rodeado por tanta dor que fugir de tudo parecia o único modo de ter paz.

Corações RessuscitadosOnde histórias criam vida. Descubra agora