Capítulo 6

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Raquel abriu a porta sorridente.
_Oi!
_Oi... -disse Marina desconfiada.
Marina achava que seria recebida, se recebida, com xingamentos, acusações, gritarias e tudo o mais, mas não foi nada disto. Poderia se esperar de tudo vindo de Raquel.
_Posso entrar? -pergunta dando um passo a frente.
Raquel se põe a sua frente bloqueando a passagem.
Seus olhos verdes vidrados nos de Marina, meio sorriso e a cabeça tombada de lado, pergunta:
_O que você quer?
_Não fala assim, Raquel...
Havia um tom de tristeza e arrependimento na voz de Marina. Raquel se satisfez, queria que sofresse igual sofrera várias e várias vezes.
_Eu não disse nada de mais, só perguntei o que quer -disse sorridente.
_Posso? -perguntou Marina apontando para dentro da sua casa.
Raquel hesitou um pouco mas acabou cedendo.
_Quer uma água, um suco ou qualquer coisa? -perguntou enquanto fechava a porta.
_Não, obrigada.
Raquel dirigiu se para a cozinha, Marina foi atrás dela.
_Você não vai dizer nada?
Raquel pegou um copo...
_Dizer o quê?
_Eu sei que você viu.
Abriu a geladeira pegando uma garrafa de água...
_Vi o quê?
Encheu o copo...
_Você me viu no centro hoje mais cedo.
Bebeu toda a água do copo sem pressa.
Marina a observava, tentava descobrir o que se passava em sua cabeça, mas Raquel não expressava emoção alguma.
_Ah sim, me lembro... -Raquel disse por fim.
_E você viu com quem eu estava...
_Sim.
_Com a Val...
Raquel balançou a cabeça afirmando.
_Você não vai dizer nada?
Balança a cabeça negando e num tom seco completa.
_Não tenho nada pra dizer. A vida é sua.
_Para Raquel, não fala assim!
Raquel sorri enchendo novamente o copo.
_Eu estava com ela sim, confesso, mas não é como você pensa. Eu não te trair se acha assim.
_Eu não acho nada, sério, esta tudo bem -bebe mais um pouco da água.
_Não, não está...
_Não -Raquel a interrompe- está sim. Foi você que quis assim... tudo bem, eu entendo, não tenho nada com isto.
_Por favor Raquel... -aproximou se dela- grite, xingue, me bata... qualquer coisa! Só não diga que está tudo bem porque não está. Você diz estar bem mas não está, está fingindo!
"Eu finjo estar bem, mas não estou..."
Raquel sentiu um ódio crescer no meio de suas entranhas. Apertou o copo em sua mão com força.
Como Marina teve a coragem de usar as suas palavras contra ela? Se arrependeu de ter dito a Marina o que sentia. Sabia que, cedo ou tarde, Marina ia jogar na sua cara.
_Você. Não. Tem. O. Direito!! -gruniu Raquel jogando toda a água que estava em seu copo no rosto de Marina.
Seus olhos faiscavam de raiva. Ao sentir o nó em sua garganta, Raquel saiu da cozinha esbarrando em Marina, não se desculpou. Entrou no banheiro do andar de baixo batendo com força a porta atrás dela.
Andando de um lado para o outro dentro do banheiro, Raquel tentava se acalmar, respirava fundo, pulava sacudindo as mãos... precisava se acalmar. Não entregaria os pontos assim de bandeira.
Molhou o rosto. A água fria da pia contrastou se com o seu rosto que queimava.
_Raquel, por favor... me desculpa. Vamos conversar... -disse Marina do outro lado da porta.
Raquel odiava o modo como Marina falava, calma, cautelosa, era como se tentasse domar um animal selvagem.
_Eu cancelei uma reunião muito importante para vir aqui e te explicar que não é o que você está pensando...
"Então era isto?" Raquel pensou encarando se no espelho, "ao pressentir que estava me perdendo, você abre mão da sua importante reuniãozinha-de-merda para vir aqui com desculpinhas... vai se fuder!"
Lembrou se de um certo dia em que pediu para Marina vir ficar com ela pois estava sentindo se carente e sozinha. Marina, por sua vez, disse que não poderia ir pois estava trabalhando e que não era para ela se sentir sozinha.
"Engraçado que é só quando você quer. Dane se o que eu quero, né?"
Raquel não deu ouvidos ao que Marina falava do outro lado, sentia alguma coisa crescendo dentro dela.
Olhava se no espelho, ainda restava um pouco do batom vermelho que experimentara junto com Lia em uma loja mais cedo, dizia ser de longa duração.
Comecou a contar até dez mentalmente.
"Um..." prendeu o seu cabelo num coque frouxo.
"Dois... Você me fez de idiota este tempo todo!"
"Três..." molhou a ponta da toalha limpando a sua boca.
"Quatro... me fez acreditar que tudo isso era imaginação da minha cabeça... Se fez de vítima!"
"Cinco..." limpou os olhos borrados de delineador.
"Seis...Nunca está por perto quando eu preciso!"
"Sete..." arregaçou as mangas da blusa.
"Oito... me fez me apaixonar por você!"
Nunca admitiu estar apaixonada por Marina, nem para si mesma. Raquel achava que pessoas apaixonadas se tornavam fracas, eram manipuladas e enganadas. Ela foi fraca, manipula e enganada por Marina.
"Nove..." respirou fundo.
"Dez...ACABOU!!!"
Em um único movimento, Raquel fechou a mão esquerda e com toda força deu um soco reto no seu reflexo no espelho estilhaçado o. Acertou mais um soco. Cacos de vidro do espelho a cortaram, pequenos fiapos do espelho fincaram nos nó dos seus dedos, sangravam.
Aquela dor era nova, ardia numa intensidade revigorante. Raquel respirou fundo vendo o estrago em sua mão. Absorvia cada segundo daquela dor.
Marina que falava para as paredes, ouviu o barulho.
_Raquel, o que foi isto?
Raquel não respondeu.
_Raquel abra a porta!
Raquel não tinha trancado a porta, Marina sabia respeitar o seu espaço.
Nos seus momento de crise, Marina mantinha uma certa distância de Raquel, quando ela permitia ser ajudada ou quando se tornava um risco para si mesma, Marina se aproximava para ajudar ou intervir.
_Raquel, se você não abrir a porta, eu vou entrar!
Marina não esperou ela abrir, preocupada dela fazer alguma coisa, abriu a porta.
Aquela era uma situação em que Marina interveria.
_Que merda Raquel! -exclamou quando viu a sua mão cheia de sangue e os cacos de vidro na pia.
Pegou a toalha em cima da pia e enrolou a mão ferida.
Marina a sacudiu tirando do seu transe.
_Sai daqui! -Raquel tentava se livrar dela, a empurrava- sai, vai embora!
Se debatia.
Marina a forçava a olha-la, segurava o seu rosto com as duas mãos.
_Olha pra mim Raquel, olha! -ordenava- você está tão perdida neste seu mundinho, confia veemente nas sua imaginações férteis e doentia que está se perdendo, acredita ser realmente real...
Marina olhava em seus olhos.
_Eu não tenho nada com a Val. Eu no tenho nada com ninguém... Eu não quero te machucar.
Raquel a empurra.
_Não se trata de você e a Val... -fez uma pausa- você, você, você. Já parou para pensar que tudo se trata de você?
Marina não respondeu, não deu ouvidos a ela. Procurava no armário do banheiro kits de primeiros socorros.
_Estão em baixo da pia da cozinha -disse Raquel adivinhando o que ela procurava.
Marina não se surpreendeu deles estarem na cozinha. A relação entre Raquel e a cozinha não era muito boa, sempre desastrada.
Uma vez, Raquel queimou a coxa da perna direita, as costas da mão e respingos na barriga com mingau de aveia que acabara de tirar do fogo. Não pergunte como ela conseguiu, nem ela mesma sabe. Esconde as marcas do queimado na coxa com uma tatuagem.
Sem contar o seu braço. Hoje em dia não aparece muito, só algumas manchinhas. O seu braço ficou igual o cachorro da raça dálmata, cheio de pintinhas pretas, quando teve a ideia de fritar alguns bifes de hambúrgueres numa frigideira com óleo muito quente.
Marina a levou contigo até a cozinha para pegar o kit de primeiro socorros. Não ia deixa-la sozinha junto com aqueles cacos de vidro. Sabe se lá o que se passava na cabeça de Raquel.
Marina limpou o seus ferimentos, retirou com cuidado os fiapos do espelho fincados na mão de Raquel e enfaixou.
Agora Raquel sentia as consequências dos seus atos. Passada a adrenalina, a dor já não era tão boa assim.
As duas estavam em silêncio, uma não tinha coragem de encarar a outra. Marina guardava o kit no seu lugar quando a mãe de Raquel chegou.
_Oie. Cheguei! -gritou a sua mãe fechando a porta da entrada- Raquel, por que você deixou a porta destrancada? Quantas vezes eu já falei para não deixar destrancada?
Raquel e Marina se entre olharam rapidamente.
_Oi, vocês estão aqui! -disse ao entrar pela cozinha cheia de sacolas.
Colocou as sacolas em cima da mesa e começou a guardar as compras.
_O que aconteceu com a sua mão? -pergunta a su mãe guardando as carnes na geladeira.
_Nada! -respondeu Raquel rapidamente.
_Como não é nada? Alguma coisa aconteceu -virou se para Marina na esperança dela dizer o que aconteceu- o que houve Marina?
_Já disse que não foi nada mãe, que saco? -disse Raquel irritada.
_Não foi nada de mais dona Miranda, não precisa se preocupar -olhou para Raquel rapidamente- foi um acidente.
_É, um acidente! -repetiu Raquel.
Desconfiada, dona Miranda, mãe de Raquel, deixou pra lá.
_Sei... já lancharam? Trouxe biscoitos, pão, bolo...
Marina agradeceu.
_Não, muito obrigada. Fica para a próxima.
_Não, muito obrigada. Fica para a próxima -repetiu Raquel.
Raquel respirou fundo virando se para Marina.
_Agora você pode ir embora! -disse secamente.
Raquel não reagiu quando Marina a beijou, não se afastou e nem correspondeu ao seu beijo. Quando Marina se afastou, Raquel limpou a boca com as costas da sua mão enfaixada. Sentiu dor ao fazer isto.
_Bom dona Miranda -virou se para a mãe de Raquel- foi um prazer revê-la mas tenho que ir... -olhou para Raquel mas ainda falava para a sua mãe- cuide dela por mim, é importante- caminhou em direção a sala- até outro dia.
Marina já estava na porta da cozinha quando dona Miranda perguntou a Raquel se la não ia levar Marina até a saída.
Raquel olhou para Marina que estava parada na porta e novamente olhou para a sua mãe.
_Se alguém ligar perguntando por mim, diga que eu morri!!
Atravessou a cozinha em passos largos, passou por Marina sem olhar para ela, subiu as escadas e foi se trancar em seu quarto.
_Tchau... -disse Marina num sorriso triste para a dona Miranda.
Os olhos de Raquel se encheram de água, queria gritar, socar alguma coisa, sair correndo... qualquer coisa que aliviasse aquilo que estava sentindo.
Sentada na cama, encarava o guarda-roupa, precisamente encarava a última gaveta. Precisava daquilo.
Agora era uma ótima ideia para usar, era uma emergência.
Escancarou a última gaveta do guarda-roupa, procurou a meia velha lá no fundo. A sua mão doía enquanto revirava a.
"Terei que me acostumar a usar a outra mão até isto aqui sarar." disse para si mesma.
Usar ou não usar, eis a questão!
Raquel se viu em um impasse, encarava o saquinho em cima da sua cama, "usar ou não usar?"
Precisava usar para esquecer o seu problema chamado 'Marina'.
Se usasse, estaria sendo fraca, não encararia os seus problemas de frente só ia tampando os com álcool e drogas de todos os tipos.
Não queria ser mais fraca. Não ia ser mais fraca.
Pegou o conteúdo do saquinho e foi para o banheiro do andar de cima, jogou tudo dentro do vaso sanitário dando descarga rapidamente para que não desse tempo de se arrepender.
Voltou para o seu quarto, chamou o Desespero, seu gato, para deitar se junto a ela.
Os fone no ouvido num volume razoável onde a fizesse não ouvir mais o mundo a sua volta, só o seu mundo e como trilha sonora, metalcore para se perder de vez nele.
Acariciou o seu gato até pegar no sono.

NÃO É A MINHA CULPA SER ASSIM!!!  (Volume 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora